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Parte 6: Brasília e Chapada dos Veadeiros

Depois de voltar para casa e ficar mais tempo que o previsto. Voltei para a estrada. Primeiro passei em São Carlos para rever alguns amigos. Na seqüência fui para Ribeirão Preto conhecer o filho do Gabriel, um grande amigo que conheci na graduação. Estava agora na rodoviária e depois de quatro horas de atraso, pela madrugada, chegava o ônibus que me levaria para a capital do país.

“O Brasil estréia nova capital. Nasce Brasília, súbita, no centro de uma grande cruz traçada sobre o pó vermelho do deserto, distante do litoral; longe de tudo, lá no fim do mundo ou em seu principio. Foi construída num ritmo alucinante. Durante três anos este foi um formigueiro onde os operários e os técnicos trabalharam ombro a ombro noite e dia, dividindo a tarefa, o prato e o teto. Mas quando Brasília fica pronta, termina a fugaz ilusão de fraternidade. Fecham-se de repente as portas: a cidade não serve aos serventes. Brasília deixa de fora quem ergueu com suas mãos.” O Século do Vento, Eduardo Galeano

Brasília lugar tão presente em nossas vidas, mesmo que seja tão distante para a maioria de nós. Aqui é onde fica o controle do videogame e os falastrões engravatados jogam o jogo Brasil sem medo de morrer, afinal, conseguiram vidas infinitas. Nossa capital, tão mal freqüentada por figurões, consegue mostrar muita beleza e simpatia.

Victoria me aguardava em sua agradável casa. Entrei em contato pelo couchsurfing. Sempre atenciosa, deu todas as dicas para me locomover na confusa Brasília. Cheguei a sua casa e logo já me levou para um tour por toda cidade. Ela tentou me explicar às nomenclaturas utilizadas nos nomes das ruas e eu, como péssimo aluno, nada aprendi. Passamos por muitos lugares. Terminamos o dia a beira do lago Paranoá admirando o pôr do sol.

Informação 6.1: A parte inicial de Brasília projetada por Lúcio Costa e Oscar Niemeyer chama-se plano piloto e tem o formato de um avião. Lógico que a cidade cresceu e não se limita mais ao avião, as cidades criadas em volta de Brasília (que pertencem ao Distrito Federal) se chamam cidades satélites.

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Vic é uma guria especial, seu filho Romeo também. Cheia das habilidades artísticas: cantora, professora de dança, toca vários instrumentos musicais e futura pedagoga. Dona de uma voz belíssima. Eu não me cansava em pedir que ela cantasse mais e mais.

No outro dia sai caminhar pela Esplanada e conhecer todos os detalhes do plano piloto. Surpreendi-me muito com a cidade e gostei de cada canto. A igreja, que não se parece igreja, é bem legal. A vista que se tem da esplanada subindo ao topo da torre de TV é a melhor. Fiz uma visita ao Congresso Nacional e pude ver alguns hipócritas frente a frente. Voltei para a casa da Vic, pela noite, e estava tendo um forró dos mais animados. Como bom mal dançarino fiquei só olhando e já começava a pensar no meu próximo destino.

Informação 6.2: É possível visitar o Congresso Nacional numa visita guiada a cada trinta minutos em horário comercial, de segunda a segunda. A visita da mais ênfase nas obras de arte que existem no Congresso no que na verdadeira importância do mesmo, mas vale a visita.

Informação 6.3: A cidade foi projetada para a utilização de carro. Então, para nós que utilizamos transportes públicos à vida é difícil. Existem algumas vans (creio que sejam clandestinas) que ajudam e muito.

Dica 6.1: A cidade é toda bonita, por ser pré-fabricada sua arquitetura se destaca, mas o que há de mais bonito na cidade é obra da natureza: O lago Paranoá.

Inspiração 6.1: Como diria a música do Natiruts: "Eu vou surfar no céu azul de nuvens doidas. Da capital do meu país". Aquele pedaço de céu é doido mesmo.

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Numa manhã segui para a Chapada dos Veadeiros. O ônibus seguia para a "capital" da chapada, Alto Paraíso. Logo observei que tinha vários mochileiros no busão. Fui sorteado a sentar ao lado duma nativa, foi massa, ela me contou algumas coisas sobre a vida no cerrado. Vivia numa cidade no sul do Tocantins. Eu tinha a intenção de ficar na vila de São Jorge, onde se encontra o parque da Chapada dos Veadeiros. Estando lá conseguiria fazer mais coisas caminhando.

Curiosidade 6.1: A Chapada dos Veadeiros fica no mesmo paralelo de Machu Picchu.

De todos os mochileiros que estavam no ônibus todos ficariam em Alto Paraíso, com exceção de mim, Gita e Marie que seguiríamos para a vila de São Jorge. Conheci-as quando tentava negociar algum transporte para São Jorge e assim nos juntamos. Dois taxistas quase saíram no tapa para nos levar a São Jorge, bom pra nós que pagamos oito reais por cabeça. Chegando a São Jorge, Gita disse que tinha um hostel (Casa do Sucupira) para ficar, Marie e eu fomos com ela e assim nasceu a família da chapada.

Curiosidade 6.2: O trecho de pista que liga Alto Paraíso e a vila de São Jorge é o trecho rodoviário mais bonito que vi no Brasil.

Gita é uma inglesa de vinte e poucos anos, que teve sua educação toda em casa. Só quando foi fazer faculdade de fotografia que se iniciou num ambiente escolar. Ela é diferente de todos nós, ela consegue se surpreender com toda forma de vida, apesar dos anos a criança nela não se partiu, que inveja. Mochileira de primeira viagem e queria conhecer sozinha a América do Sul que tanto a encantava por histórias.

Marie é belga e é recém balzaquiana, agrônoma de profissão, mas forrozeira de coração. Ela tem a profissão mais incrível que já ouvi falar, trabalha com agronomia em regiões de conflito de guerra. Conhece o mundo inteiro e viveu anos na África, no Brasil já tinha estado antes. Ela estava de férias e seu tempo era limitado no país, queria conhecer a chapada e fazer infinitas aulas de forró, sua verdadeira paixão. A pessoa de sorriso mais fácil que já conheci.

Fomos para a casa do Sucupira e logo depois estávamos metidos numa trilha rumo ao rio da lua. Conhecemos uma tribo indígena no caminho e logo depois mergulhávamos, pela primeira vez, nas águas geladas da chapada. Nesse primeiro dia andamos demais e cada passo servia para nos aproximar mais.

“Acho que os dias na Chapada dos Veadeiros serão os melhores. Hoje enquanto recolhíamos frutas na aldeia, pelas nossas conversas acho que criamos uma grande empatia.” Notas de Diário

O segundo dia em São Jorge foi o dia de “todas as ajudas”. Decidimos que conheceríamos o Vale da Lua e a Raizama. Acordamos cedo e fomos para a trilha do Vale da Lua, como tinha chovido muito dias antes, chegamos num trecho intransponível, assim tivemos que voltar para a rodovia. Depois de duas caronas, enfim, chegávamos ao diferente Vale da Lua. O vale é propriedade privada, o valor de entrada é de vinte reais (como quase tudo na chapada). Aqui é lindo demais e não poderia ter outro nome que não fosse Vale da Lua. Não tem como ir para a chapada e não ir para o vale. Ficamos um bom tempo nadando e escalando o infinito de pedras até que o mundo caiu em forma de chuva, os poucos visitantes do dia foram se abrigar no mesmo lugar. Sai à procura de carona para voltar a São Jorge, antes conheci a Talita e o Reginaldo (casal de Sampa) e combinamos de no outro dia fazer as trilhas do parque da chapada juntos. A carona consegui com outro casal que também partia para São Jorge.

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No meio do trajeto o casal (que não consigo lembrar o nome) nos convidou para seguirmos com eles até as águas termais e ainda disseram que depois nos deixariam na Raizama (nosso destino pensado). Claro que nós aceitamos, a parte boa de não ter planos fixos é aceitar qualquer boa proposta no caminho. Eles tinham uma marmita turbinada e deu para nós cinco almoçarmos tranquilamente, com direito até cerveja. Depois do role gourmet nas termais fomos deixados na Raizama. A entrada é toda estilosa, um palco com as imagens de Hendrix, Raúl Seixas e John Lennon. A natureza do lugar não deve em nada, com uma trilha de uma hora, prainha e muita manga para comer. Agora tínhamos que voltar para São Jorge e uma longa distância nos separavam. Depois de caminhar uma boa parte o mundo caiu em forma de chuva, novamente. Eu já tinha desistido de pegar caronas, pois estávamos todos molhados e cheios de barro (o caminho virou um lamaçal), até que um anjo em forma de fusca parou e salvou nossas vidas. O tiozinho nos deixou na frente do hostel, molhamos e sujamos todo o carro dele e ele ainda nos deu o golpe baixo de simplicidade ao se despedir com a seguinte frase: "Obrigado por estarem aqui". Não sou de chorar, mas quis chorar ali e só pude agradecer de um jeito cretino falando: "Mano, eu que agradeço. Você salvou nossas vidas", deveria ter-lo convidado para jantar junto conosco, mas não fiz. Fomos jantar num bom restaurante em São Jorge. Tomamos pinga de um bode que despeja pinga pelo rabo e seguimos para um botequinho que estava tendo boa música.

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Aqui acontece a maior coincidência da minha vida, neste boteco tinha umas dez pessoas no máximo, contando com nós três. Fui pegar umas cervejas e olhei um maluco que me era muito conhecido, sabia que o conhecia só não sabia de onde. Até que ele percebeu minha presença e juntos falamos "Salkantay". Salkantay é o nome de uma montanha no Peru que também dá nome a uma trilha alternativa a Machu Picchu. Há dois anos exatos (sem brincadeira, exatamente dois anos), Jonathan (o cara que encontrei no bar), eu e mais sete pessoas iniciava essa trilha juntos. Nunca mais tinha falado com ele, ele não tinha facebook na época. Sabia que ele morava no Tocantins. Encontrar ele numa vila que tem 500 habitantes, num boteco com dez pessoas foi estranho demais. Ele se juntou a nós e ficamos o resto da noite conversando. Voltamos ao Sucupira e tínhamos poucas horas para dormir, o próximo dia seria intenso, pois faríamos todas as trilhas do parque da Chapada com a Talita e o Reginaldo.

Acordamos cedo, preparamos nosso lanche do dia, e partimos a pé para o parque. Esperamos o casal. Até então eles não sabiam da nossa intenção de percorrer todo o parque em um dia, afinal, seriam quase 25 km. Falei da nossa intenção para eles que aceitaram sem pestanejar. Decidimos começar pela trilha dos Saltos e fomos sem guia. Depois de uma longa caminhada, podemos banhar no salto dois, aqui o rio é forte, mas vale o sacrifício para chegar ao pé da cachoeira que tem 80 metros. Caminhamos e caminhamos, paramos muitas vezes para nos banhar, tomamos chuva, nos conhecemos melhor e nesse dia ouvi pela primeira vez a frase que depois a Gita falava a cada cinco minutos: "Sem medo, tem liberdade" (depois na Argentina ela tatuou "Sem medo"). Na metade do caminho não tínhamos mais água o que fez a volta da trilha dos Cânions um sacrifício. No final do dia, Talita e Reginaldo nos deu carona até o hostel e combinamos de nos encontrar no outro dia em Alto Paraíso. Nesse dia meu único tênis (uma botina Caterpillar) não aguentou e se desfez. Passei a noite fazendo gambiarras para a botina agüentar até meu regresso a Brasília.

Informação 6.4: Não é necessário guia para entrada no parque que é gratuito. Apesar disso, existem guias que ficam no parque e cobram uma diária de cento e cinquenta reais por grupo. Em minha opinião não é necessário guias para o parque, todas as trilhas são bem sinalizadas.

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No outro dia conseguimos uma carona e fomos para Alto Paraíso. Reencontramos o Reginaldo e a Talita que estavam indo para as cachoeiras de Anjos e Arcanjos e nos convidaram para seguirmos juntos. Deixamos nossas coisas no Anna Hostel (a parte boa de estar em três é o poder de barganha, conseguimos quartos por vinte e cinco reais) e seguimos viagem com o casal que mais se parecia nossos anjos. Anjos e Arcanjos fica cerca de uma hora e meia de carro e foi o melhor lugar da chapada para nós cinco. Como quase todos os lugares, este também é uma propriedade privada, deixa-se dez reais de caixinha aqui. O dono do lugar é um francês todo gente boa. Aqui a água é totalmente negra e muito gelada. Tinha apenas o nosso e outro grupinho nessas cachoeiras. O que deixou o lugar mais especial ainda. Ali tem bons lugares para saltar no rio, picos com mais de dez metros de altura. Ficamos todo o dia ali, em plena paz. Nadando e caminhando. Caminhando e nadando. Não queria nunca que esse dia acabasse. De volta a Alto Paraíso, convidamos o casal a jantar conosco. Fomos à praça principal comer, onde estava tendo apresentações culturais. Comemos, bebemos bastante e fomos dormir. No próximo dia pegaríamos carona com eles, novamente, agora para Cavalcante.

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Acordamos cedo e seguimos para Cavalcante. Iríamos de encontro à cachoeira mais bonita do Brasil (talvez do mundo), Santa Bárbara. Depois de duas horas de carro chegamos numa comunidade quilombola que toma conta da área onde se localiza Santa Bárbara (acho que pagamos quarenta reais) e seguimos parte dentro da caçamba de um carro (dos quilombolas, utilizado para o transporte até o inicio da trilha) e fizemos a outra parte a pé. Santa Bárbara brilha no meio do verde da vegetação. A vontade ao ver o brilho é seguir correndo e não perder um segundo daquele lugar. Santa Bárbara é a beleza no seu sentido mais puro. Covardia aquele lugar. O lugar é todo fechado pela vegetação e não bate quase sol, tornando a água quase congelante, mas nada que impeça você ficar a todo o momento dentro da água. A beleza vence. Estávamos no paraíso e sabíamos disso. Tentamos aproveitar o máximo, foram bons momentos num cenário incrível. Tivemos sorte de ter poucas pessoas visitando a cachoeira, assim, podemos ter Santa Bárbara só para nós em alguns momentos. Depois fomos para a Cachoeira da Capivara. Marie tinha que partir no outro dia e não fazia sentido ficar mais na chapada com a família desfalcada. Gita e eu decidimos partir também, então essa seria a nossa última cachoeira juntos. A despedida já dava seu tom. Num ritmo mais lento e com um ar de tristeza se aproximando, curtimos a bela cachoeira da Capivara. No fim da tarde, retornamos para a cidade. À noite fomos (os cinco) jantar juntos. No fim nos despedimos de Talita e Reginaldo que continuariam por mais alguns dias na Chapada. A família começava a se desfazer.

Dica 6.2: Numa época sem chuva é possível/tranqüilo chegar até a comunidade onde fica Santa Bárbara com um carro comum. Agora em época de chuva eu não aconselho.

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“No Portal da Chapada

tristeza não há

que resista à poesia

contidas nas matas

da beira do rio

-

Vão-se as mágoas

nas águas correntes

a se despencarem

em cachoeiras

-

E eu que não creio,

me rendo aos encantos

desse lugar

e sinto que a fé

preenche meu ar” Altas Histórias do Paraíso, Geraldina Lombardi

Consegui uma carona até a rodoviária de Brasília. O motorista era um cara gente boa que morava em Alto Paraíso. As duas capotaram atrás do carro e fui conversando com ele na viagem. O cara deixou a vida de radialista no nordeste para encontrar a paz espiritual na chapada, trabalhando como guia. Foi uma boa viagem. Chegando a rodoviária a Marie logo seguiria para Goiânia. Foi difícil demais deixa - lá para trás. Despedimos-nos com um abraço triplo. Que falta a alegria dela faz.

Gita tinha voo marcado para Foz do Iguaçu no final da tarde. Aproveitei para mostrar o pouco que conhecia de Brasília para ela. Caminhamos bastante por toda esplanada. Gita experimentou pela primeira vez caldo de cana e depois fomos para o aeroporto. Chegando lá descobrimos que ela tinha comprado errado a passagem e o vôo era só para o próximo dia. Não havia mais vôos para Foz nesse dia, enfim ela teria que esperar. Não iria deixá-la sozinha na cidade. Conversei com a Vic (meu couchsurfing em Brasília) e seguimos para a casa dela.

Dica 6.3: O grupo no facebook "Conexão Chapada-BSB" é um grupo de carona entre a chapada e Brasília. Funciona muito bem.

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Agora é o retorno do anjo Vic. Mesmo hospedando uma australiana, quando expliquei a ela o ocorrido ela abriu os braços e não pensou duas vezes e nos ajudou. Que gratidão. Nunca terei palavras para agradecer a Vic por esse dia. Por fim, passamos uma ótima noite. Vic com seu violão e o vinho deram o ritmo da noite. No fim das contas, foi mais que bom a Gita ter perdido o voo. No outro dia cedo nos despedimos e fomos para um shopping, comprei um novo tênis, almoçamos e seguimos para o aeroporto. Despedir-me da Gita foi à tarefa mais difícil da viagem, já tinha me acostumado com sua presença, nos entendíamos sem precisar de palavras. Agora tomávamos direções opostas. Ela iria para o sul e eu para o norte. O último abraço foi dado e fui para a rodoviária.

Chapada dos Veadeiros é toda espiritual, não tem como negar que existe uma energia boa naquele lugar. Todos que a conhecem, nunca se esquecem. As pessoas que lá vivem fazem da chapada um lugar mais especial ainda. Existem infinitas cachoeiras e trilhas, você não conseguirá conhecer tudo, então fique tranqüilo. Conheça o que der, porque cada palmo da chapada vale muito à pena. Ali, passei os melhores dias dos meus seis meses de viagem e me despedir de todos foi muito difícil. A sintonia daqueles dias é o que procuro para o restante da minha vida. Se existe um lugar para conhecer antes de morrer, esse lugar é Chapada dos Veadeiros. Claro que isso é uma opinião minha, mas nunca disse que seria imparcial. Então, pegue a mochila e vá para Veadeiros.

“Tudo mudara subitamente - o tom, o clima moral; não sabias o que penar; a quem ouvir. Como se em toda a tua vida tivesses sido conduzido pela mão como uma criança pequena e de repente tivesses de ficar por tua própria conta, tinhas de aprender a andar sozinho. Não havia ninguém por perto, nem família nem pessoas cujo julgamento respeitasses. Em tal momento, sentias a necessidade de dedicar-te a algo absoluto - vida, verdade, beleza -, de ser regido por isso, em lugar das regras feitas pelos homens que tinham sido descartadas. Precisavas render-te a um tal objetivo último de modo mais pleno, mais sem reservas do que jamais fizeras nos velhos dias familiares e tranquilos, na velha vida que estava agora abolida e abandonada para sempre.” Doutor Jivago, Boris Pasternak

Cheguei à rodoviária, tinha ônibus direto para Cuiabá (meu próximo destino seria a Chapada dos Guimarães que é próximo a Cuiabá), mas quis passar antes em Rondonópolis, não sei por que, nunca tinha pesquisado a cidade. Achei curioso o nome e apenas fui.

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Parte 7: Chapada dos Guimarães

Sempre para mim, ao se falar de Chapada, logo pensava na Chapada dos Guimarães, se existia uma chapada que sonhava em conhecer essa era a dos Guimarães.

Sai de Brasília com destino a Rondonópolis no Mato Grosso, viajei pela madrugada, nada de muito especial aconteceu no trajeto. O que me chamou a atenção na cidade de Rondonópolis foi que em alguns lugares na rodoviária e na cidade existem tradução para o esperanto. Achei interessante. Ninguém soube me explicar o porquê disso. Sempre achei que o esperanto era caviar, só ouvia dizer que existia.

Informação 7.1: Esperanto é uma língua criada para ser o idioma universal (pegando propriedades de todas as línguas para facilitar o aprendizado de todos) e claro, não vingou.

Depois de pegar outro ônibus segui para Cuiabá. No meio do caminho a policia invadiu o ônibus e foi direto em direção a um cara que estava sentado na minha frente. Devia ter uns oito policiais, todos apontaram suas metralhadoras em direção do rapaz que mais parecia um viajante normal. Revistaram a sua bolsa e acharam uns dez quilos de cocaína. Logo, levaram-no preso. Assim, todos e tudo no ônibus foram revistados. Não encontraram mais nada. Fiquei pensando muito depois disso. Se ele coloca um pouco de droga na minha mochila seria o fim da viagem. Como explicaria para policia que aquilo não era meu? Um fato curioso é o trajeto da apreensão, geralmente, a rota do tráfico é Cuiabá-Brasília, pelo simples fato de Cuiabá estar muito próximo com a divisa da Bolívia, o contrário é no mínimo esquisito. No resto da viagem o assunto no ônibus foi à má sorte do sujeito. Nunca tinha presenciado nada parecido e por alguns dias tive cuidado em excesso com minhas coisas. Isso até a memória começar deixar de lado essa história.

Cheguei a Cuiabá e logo parti para a cidade Chapada dos Guimarães (sim, esse é o nome da cidade). Chapada dos Guimarães fica distante 40km de Cuiabá, ao contrário de Cuiabá e apesar da proximidade, a cidade tem um clima muito agradável, isso pelo fato de estar mais de 600 metros acima de sua vizinha. A cidade é toda charmosa. No seu centro tem uma bela igreja e muita tranqüilidade. Nos primeiros dias fiquei na casa do gentil Gentil, tio da Tânia de Chapecó. Gentil e sua esposa são a gentileza (como seu nome já diz) em pessoas, ele era conhecedor de toda a Amazônia, seu trabalho com hidrelétricas lhe deu a oportunidade de conhecer e assim, tinha infinitas histórias que aproveitei para escutar atentamente. Afinal, iria depois seguir para a maior floresta do mundo. Além de poder conhecer um pouco mais da Tânia, através de histórias contadas pelos dois. Estava longe da Tânia, mas parecia que a presença dela estava ali. Depois de alguns belos dias na casa deles segui para um hostel no centro da cidade.

Curiosidade 7.1: Na cidade encontra-se a empresa Águas Lebrinha que extrai água da fonte bica das moças (muito boa por sinal), o legal é que é possível encher uma quantidade per capita de graça no lugar.

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Um fato interessante da Chapada é que o centro geodésico da América do Sul situa-se na cidade. Apesar de Cuiabá também dizer que o centro geodésico se encontra lá. Não sei qual está certo. Prefiro acreditar que seja o da Chapada dos Guimarães. O local está interditado (como quase todos os pontos turísticos da Chapada) pelo ICMBio por causa das erosões, mas não existe fiscalização e todos visitam o lugar mesmo assim. O centro geodésico é um lugar sem muito charme, você saberá que está no centro por causa de um suporte de uma placa. A placa é feita de bronze e foi roubada, então só sobrou o apoio dela. O interessante de estar ali é o entorno. Muito próximo encontra-se um desfiladeiro. De onde é possível avistar Cuiabá e o inicio do Pantanal norte. O ponto alto é caminhar no dedo de deus e nos seus similares. Foi a primeira vez que estava diante de um desfiladeiro em cima de uma pontinha de terra. Estar ali, vendo o Pantanal que se mostrava tão verde e tão belo, me trazia muitas saudades de estar de novo na maior planície alagada do mundo. O tempo era outro, era tempo de Chapada dos Guimarães. De ver o novo. De conhecer a novidade. De andar por terras novas.

Informação 7.2: O Pantanal é uma extensão territorial ou bioma dividido entre Brasil, Paraguai e Bolívia. No Paraguai e Bolívia a região é conhecida com Chaco ou Gran Chaco.

Curiosidade 7.2: Nos últimos anos ocorreram algumas mortes de pessoas tirando selfies/fotos no dedo de deus. O que fez a cidade não aconselhar mais a visita no local.

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O legal da Chapada dos Guimarães é que existem muitas trilhas próximas a cidade. Recheadas de cachoeiras. Para eu que curto demais caminhar é mais do que bom. Cria-se uma boa autonomia. Tem lugares que alugam bikes para fazer essas trilhas. Achei legal, apesar de preferir ir caminhando com calma e lentamente, apreciando cada novidade que ia se anunciando no caminho. As trilhas são bem marcadas e é muito fácil se achar nos arredores da cidade. Diferentemente, da Chapada dos Veadeiros, onde a vegetação é mais rasteira, na Chapada dos Guimarães a vegetação é mais densa e alta, dificultando a caminhada e também a deixando mais emocionante. Na época em que estive lá, não eram muitos os visitantes e isso fazia do lugar mais especial, conseguia aproveitar cada lugar de todas as formas sem a preocupação de ser incomodado pelo turismo de massa. Não era incomum eu ter uma cachoeira somente para mim. Quando havia pessoas, em sua maioria, eram como eu, estavam sozinhos ou em grupos pequenos, assim, facilitava a aproximação. Foram inúmeras pessoas que conheci nessas trilhas, apesar de não criar vínculos foram bons momentos nos arredores da cidade.

Para me locomover para os outros lugares mais distantes, peguei muitas caronas e numa delas eu conheci o Roberto e a Wanderléia, casal com a mesma simpatia dos xarás famosos. Num dos dias, meu intuito era seguir para uma trilha que estava bloqueada pelo ICMBio. Os nativos me disseram que era a melhor vista da Chapada. Ouvi nessas palavras “Lá é o Hors Concours da Chapada”. Depois dessa propaganda teria que conhecer a tal vista. Contei minha intenção para o casal. Estes seguiriam para o Parque da Chapada dos Guimarães, me convidaram para ir com eles no passeio e que depois me deixavam no inicio da trilha. Conhecemos a famosa cachoeira Véu de Noiva e as igualmente belas cachoeiras dos Namorados e Cachoeirinha. Foi um role muito massa. O Roberto, técnico de telecomunicações do exército, cheio de histórias não deixava o silêncio reinar em momento algum. O que achei mais legal foi que apesar de anos juntos eles pareciam um recém casal, curtindo a nova paixão. Banquei o fotografo pelo caminho, o amor estava no ar. Eu sorria a todo o momento ao vê-los e ao repetir dezenas de vezes à mesma foto, afinal, o Roberto é do exército e o chapéu tinha que sair alinhado.

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“O véu de noiva de água virgem

Me elevou, envolveu

A sua ducha me deu vertigem

Arrepio, rodopio, em mim

Seu jorro não tem mais fim

E nesse êxtase me deixo

Não sei quem sou

Estou no meio do arco-íris

E saboreio elixires de amaralis

Na cachoeira enxurrada

O véu da chuva desceu

No vento nuvem

No céu desaba

Chapinhante

Espumante

Champagne

Chapada dos Guimarães” Na Chapada, música de Tetê Espindola

Apesar de me sentir o “estraga o romance” a harmonia de nós três foi legal demais. Terminamos o Parque da Chapada dos Guimarães e como prometido eles me levaram a entrada da trilha que eu queria fazer. Ao chegar ao meu destino, para minha surpresa, os dois resolveram seguir comigo numa caminhada de quatro horas. O local da trilha é propriedade privada, então cobra-se a entrada, vinte reais por pessoa. O Roberto depois de muita conversa conseguiu um belo desconto e entramos na trilha. A trilha em algumas partes é bem fechada e em outras um pouco confusa. A beleza do caminho é indescritível, cheio de platôs gigantes de pedra. O parque dos dinossauros no meio do caminho é belíssimo, além da companhia das infinitas borboletas. Estava meio receoso do casal ter mudado o roteiro para andar e andar, queria que eles curtissem o momento, andando por duas horas e vendo a cara de exaustão dos dois, me sentia culpado. Logo ao chegar no desfiladeiro e ver aquele cenário, olhei para o rosto dos dois e ver a felicidade em seus rostos, fiquei aliviado. Foi dos momentos mais felizes da viagem, nós três e mais ninguém em companhia do fim da tarde e daquele visual lindíssimo. Enfim, tinha a imagem em minha retina do que para mim era a chapada. A cena mais legal foi quando a Wanderléia ligou (sim, tinha sinal) para sua mãe emocionada de estar ali, naquele lugar, naquele momento. Ficamos um bom tempo, lá em cima. O esforço tinha valido a pena e a beleza do lugar tinha vencido novamente. Ninguém queria ir embora. Depois de muito tempo resolvemos voltar. A volta da trilha foi tranquila, a leveza do dever cumprido fez o cansaço desaparecer e seguimos realmente felizes. Parecíamos três crianças com seus presentes de Natal em mãos.

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“Ao ver o sorriso deles lá em cima. Tive a certeza que a divida pela carona estava paga. Muito feliz em levar um pouco de felicidade para eles. Realmente muito feliz.” Notas de Diário

A Chapada dos Guimarães se difere das outras chapadas brasileiras por ter paredões contínuos, infinitos no olhar. Lugar único. O mais interessante é observar a transição de vegetação, ponto de encontro do Cerrado, Pantanal e Amazônia. Aqui o turismo é mais familiar, não atrai tantos mochileiros como as chapadas dos Veadeiros e Diamantina, mas isso não impede do local ser encantador igualmente, mas claro, de uma forma diferente. Aqui se encontra o centro geodésico da América do Sul. De forma surrealistica é possível sentir toda a magia do nosso continente. Escutar os ecos de todos os nossos povos, como: da terra do fogo, incas, aimarás, guaranis, mapuches, cablocos, mestiços, homens da floresta e todos mais. Aqui já seria um lugar especial só pela localização geográfica, mas ai a natureza inventou a Chapada dos Guimarães, a cereja do bolo.

“Mais um sonho realizado. Chapada dos Guimarães e seus paredões, enfim, conheci-os. Muitas coisas boas acontecendo por esses dias. Não poderia imaginar tanta coisa boa em tão pouco tempo. Obrigado quem quer que seja o senhor do tempo. Jesus, Alá, Buda, Krishna, Jah, Oxum, Pachamama, pra quem seja, meu muito obrigado.” Notas de Diário

Voltei para Cuiabá numa manhã e tinha todo o dia para conhecer um pouco da cidade (o ônibus para Porto Velho sairia por volta das 10 horas da noite). Caminhei dois quarteirões e voltei para a rodoviária, foi a única vez que o sol me venceu na viagem. Nunca tinha provado um dia de sol tão quente, era impossível caminhar naquele dia, sentei e esperei. Agora é hora de estar de frente com a Amazônia. Depois de anos de espera, enfim, adentraria o maior dos meus sonhos. Enfim, era hora de buscá-lo, quem? Meu sonho.

“Um homem precisa viajar. Por sua conta, não por meio de histórias, imagens, livros ou TV. Precisa viajar por si, com seus olhos e pés, para entender o que é seu. Para um dia plantar as suas próprias árvores e dar-lhes valor. Conhecer o frio para desfrutar o calor. E o oposto. Sentir a distância e o desabrigo para estar bem sob o próprio teto. Um homem precisa viajar para lugares que não conhece para quebrar essa arrogância que nos faz ver o mundo como o imaginamos, e não simplesmente como é ou pode ser. Que nos faz professores e doutores do que não vimos, quando deveríamos ser alunos, e simplesmente ir ver”. Mar sem fim, Amyr Klink

Agora estou dentro de um ônibus, o Natal está cada vez mais próximo. Atravesso a fronteira, estou em Rondônia. Ansioso para chegar a Porto Velho.

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Parte 8: Rondônia

Quando trabalhava em São Paulo, morei numa república e lá conheci o Pedro, rondoniense e aspirante a cineasta. Mesmo sem planejar essa viagem, sempre dizia a ele que um dia bateria em sua porta em Rondônia. Ele estranhava um paulista querer conhecer Rondônia e eu achava estranho ele se mudar do paraíso amazônico para morar no caos paulista, a selva de pedra. Mas ele tinha um bom motivo, o cinema.

O trajeto Cuiabá até Porto Velho foi o mais longo que fiz dentro de um ônibus nessa viagem. Foram quase trinta horas de belas paisagens. Passamos por dezenas de cidades, das que paramos Vilhena foi a que mais gostei, por seu clima agradável e muito verde ao redor. Lembro de ver uma casa suspensa, ela se erguia no meio da mata sobreposta em algo que me parecia um poste, fiquei perplexo. Pena não dar tempo de tirar foto. Dentro do ônibus, quase todo mundo virou amigo. Muitas pessoas que tentam a vida em outros estados ou regiões estavam voltando para passar o final de ano com a família. Muitos presentes de natal viajaram conosco. Eram tantas pessoas voltando para Porto Velho que só existiam passagens saindo de Cuiabá para depois de quatro dias da minha saída. O clima e as conversas eram em tom nostálgico. Muita ansiedade por parte de todos. Muitas histórias de saudades. O ônibus parou na rodoviária de Porto Velho. Creio que naquele momento o tempo parou. A distância e o tempo não importava mais. No meio de tantas pessoas se abraçando eu tentava pegar minha mochila. Depois de receber alguns abraços de despedidas eu caminhei a procura do Hugo.

“Quando abandonava a cidade ainda silenciosa, à luz da incipiente madrugada, caminhando devagar, com as pernas enrijecidas, avistou nas proximidades da última cabana um vulto que ali estava acocorado. Era Govinda. Ergueu-se e foi com Sidarta, o peregrino.

– Vieste mesmo – disse Sidarta, sorrindo.

– Vim – confirmou Govinda.” Sidarta, Hermann Hesse

Nesse dia o Pedro não estava na cidade. Estava terminando o intercâmbio nos Estados Unidos. Sobrou para seu irmão Hugo ir ao meu encontro na rodoviária. Hugo é um cara gente boa demais. Futuro médico e pai do Miguel. Ele desde o inicio me fez sentir em casa. Logo depois já fomos para um churrasco da família. Lá pude conhecer os pais do Pedro e do Hugo, a Zilma e o Renato. O interessante nesse dia foi conhecer o Cartaxo, dos melhores amigos deles, que estuda na USP São Carlos mesmo lugar em que fiz minha graduação. Foi bom conversar sobre a universidade e matar um pouco das saudades dos dias de estudante.

“Existem poucas coisas que me arrependo na vida, uma delas é ter deixado a ONG Napra. Com ela teria vindo antes conhecer as populações ribeirinhas do rio Madeira e de alguma forma iria aprender e ensinar. Depois de anos com isso na cabeça, por fim, pago essa divida que tinha comigo mesmo.” Notas de Diário

No outro dia, fomos buscar o Pedro no aeroporto. Mal conseguia vê-lo, estava no meio de tantas malas. Foi bom reencontrar o Pedrão. Nesse mesmo dia conheci o Bruno, outro cara bem gente boa. Ele sonha em fazer um mochilão pela América do Sul. Um dia depois fomos jogar bola. Foi muito legal, marcaram um jogo dos amigos do Pedro contra outro time. O Brunão assegurou nossa vitória agarrando tudo no gol. Já começava a me sentir em casa em Porto Velho.

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O pôr-do-sol em Porto Velho é lindo e fica muito mais bonito a beira do rio Madeira. Acompanhar toda a descida do sol até ele se esconder para depois do rio, é algo que realmente vale à pena. Todos os fins de tarde existem uma boa platéia (a beira rio) para acompanhar os últimos momentos do sol no dia. De resto, Porto Velho parece-se com um aglomerado de bairros. Não tem cara de capital do estado. A cidade de Ji-Paraná tem mais cara de capital. No entanto, as pessoas do lugar é o que faz de Porto Velho um lugar especial.

Culinária 8.1: O açaí de Porto Velho é muito bom.

Culinária 8.2: O melhor suco de cupuaçu fica no bar flutuante no rio madeira.

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Aqui tive uma vida bem familiar. Peguei emprestado a Zilma como mãe. Ela é advogada, psicóloga e principalmente batalhadora. Conhece muito sobre a vida. Tive muitas boas conversas com ela. Contava sobre a confusão que é a minha cabeça, minhas intenções sobre a viagem e sobre as banalidades da vida. Ela tinha bons conselhos e sempre me fazia pensar com seus questionamentos. Na verdade eu ainda penso sobre esses dias. Enfim, a Zilma é uma pessoa que todos deveriam conhecer. O Renato é médico e trabalhou bastante tempo com as populações ribeirinhas da Amazônia. Conhece muito de doenças tropicais e aproveitei para pegar o máximo de informação para minha proteção na floresta. Na maioria do tempo estava na companhia do Pedro e do Hugo. Tive o prazer de passar o Natal na companhia do Pedro, Hugo, Zilma e Renato e o restante de suas famílias. Foi muito bom.

Informação 8.1: A malária é transmitida pelo mosquito Anopheles. Os horários de maior risco são no amanhecer e ao entardecer. Então, se tiver pela Amazônia é bom ter uma atenção especial nesses dois períodos.

Fomos acampar em um dia de sol. A idéia era fazer algumas trilhas na floresta que margeia a cidade. Fomos eu, Pedro, Hugão, Bruno e o Cartaxo. Ao chegar arrumamos o acampamento e começamos preparar a comida do almoço. Depois dos afazeres saímos para caminhar no meio da mata. O Hugão conhece bem o lugar. Ele tinha dito que a trilha seria feita andando pelo rio. Achei que era brincadeira, ao menos torcia para ser. Começamos a trilha e logo ela era interrompida por um rio, que mais se parecia como o rio do filme da Anaconda. Eu era o último da fila. Chegando ao rio o Hugo não pestanejou e pulou e assim, foi um a um se jogando dentro d’água. Na minha vez, eu quis voltar, mas segui em frente. No inicio daquele rio acinzentado, imaginava um monte de coisas, mas logo a preocupação foi embora e comecei a curtir a trilha aquática que estávamos fazendo. Alternávamos trechos por terra e por água. Depois de um bom tempo de trilha o Cartaxo não se sentia muito confortável em caminhar pelo rio. Em comum acordo, decidimos voltar. Só que tínhamos que voltar por terra. Isso era um problema. O Hugo analisou o terreno e indicou uma direção e fomos. Com dois facões abríamos caminho pela mata que em momentos era bem fechada. Por mais que caminhávamos não havia sinal que estávamos na direção certa. Eu estava tranqüilo até que o Bruno erra uma facãozada e acerta sua canela. Nesse momento certo desespero bateu em todos. Sangrava demais. Depois do susto e com o sangue estancado voltamos a caminhar. Caminhamos um pouco mais e saímos da mata fechada, avistando uma pista no horizonte. Caminhamos por um longo tempo e voltamos para o acampamento. No resto do dia, nadamos e conversamos bastante. Foram boas as conversas e as risadas. Melhores foram às companhias. Prazer imenso de ter conhecido-os. Pedro, Hugo, Bruno e Cartaxo valeu demais. No outro dia partimos em direção a cidade.

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“Hoje pela primeira vez entrei na floresta amazônica. Apesar de estar próxima a cidade, era a Amazônia e isso me deixa feliz. Depois de anos imaginando como seria, enfim tinha acontecido.“ Notas de Diário

Os dias aqui foram realmente bons, principalmente, por causa da família Pereira/Watanabe que me acolheu como um filho e irmão. Meu eternos agradecimentos por esses dias. Muito Obrigado.

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Agora daria uma pausa em Rondônia e seguiria para o Acre, era hora de conhecer as terras de Chico Mendes. Peguei algumas poucas coisas e segui viagem.

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Parte 9: Pelas terras de Chico Mendes, Acre

De Porto Velho segui para Rio Branco, enfim saberia se o Acre existe ou não. Neste dia o Pedro, Bruno e Daniel me acompanharam até a rodoviária. Antes tomamos o melhor açaí da viagem, até então. A estrada para Rio Branco é muito ruim (parte rondoniense) até chegar à divisa natural com o Acre, o rio Madeira. Depois de cruzar o rio na balsa, a viagem seguiu teoricamente tranquila, apesar de o ar condicionado estar congelante.

Informação 9.1: No norte do país tem-se o melhor serviço rodoviário, em minha opinião, do Brasil. Todo motorista explica o percurso, todas as cidades, todas as paradas, a importância do cinto de segurança e algumas companhias distribuem lanches durante a viagem.

Cheguei a Rio Branco na madrugada, depois de dormir algumas horas na rodoviária segui para Xapuri, terra do grande Chico Mendes. Seriam de cinco a seis horas de viagem num trecho que não chega a duzentos quilômetros.

"Peguei um ônibus "pinga-pinga" para Xapuri. Certo momento, contei cento e vinte pessoas dentro do ônibus que iria percorrer quase duzentos quilômetros. Crianças se aglomeravam nos vãos das poltronas. Idosos se amontoavam no corredor e parecia que todas as gestantes do Acre queriam ir para Xapuri neste dia. No inicio achei interessante não deixar ninguém para trás, mas logo essa idéia desapareceu, já tinha perdido a conta de pessoas no ônibus. Seriam quase cinco horas de viagem (com sorte), tempo demais para o caos instaurado dentro do ferro ambulante. O cobrador do ônibus era um tanto quanto curioso, parecia um ditador rodoviário e todos pareciam ter medo do sujeito. Ele sempre via mais espaço e não parava de deixar entrar pessoas. Pessoas entravam, nenhuma saía. A cada 500 metros o bus parava e encaixotava as pessoas, ninguém descia. Diante de sua poltrona confortável, único lugar cômodo do bus, pois até o motorista estava rodeado de pessoas, o cobrador indicava para mais pessoas entrarem. Até que um momento uma grávida indicava do lado de fora para entrar, neste momento, o cobrador teve que sair para pegar uma encomenda na porta de um sítio. Todos com cara de prazer indicaram, enquanto a mulher grávida subia os degraus, para se sentar na poltrona do cobrador. O cobrador de fora ainda tentou evitar, de nada adiantou, teve que subir junto com no mínimo duzentas pessoas de pé no ônibus. Não recuperou seu lugar, mas depois desse momento ele não deixou mais ninguém subir no ônibus." Notas de Diário

Depois de uma viagem em que ônibus parava a todo momento, finalmente, chegava a Xapuri. Meu destino exato seria o seringal Cachoeira, principal empate de Chico Mendes.

Para quem não conhece Chico Mendes, farei uma breve apresentação. Chico Mendes é um homem nascido no Acre, cria da floresta amazônica que teve a sorte de encontrar um refugiado da coluna Prestes e ter uma educação diferenciada por conta deste mesmo refugiado. Seringueiro desde sempre, viu na década de 70 com o apoio da ditadura militar, latifundiários vindos do sul, desmatar o nosso Acre (roubado/comprado da Bolívia) para a criação de gado. Apesar do êxodo da borracha no final do século dezenove e sua decadência no século posterior, o extrativismo ainda representava setenta por cento da economia do Acre, enquanto o latifúndio representava cinco por cento. O latifúndio começou a mudar a vida do homem da floresta, pois desmatando a floresta não tinha mais a seringa e a castanha, principais produtos do extrativismo local. Chico virou líder do movimento seringueiro e com sua metodologia de empates, baseado nas teorias de Gandhi, combateu o desmatamento de sua região. O empate era um boicote no desmatamento, junto com os seringueiros e suas famílias iam até a zona que seria devastada e ficavam ali parados na frente dos tratores, como barreiras humanas. Também saqueavam as motosserras. Chico chamou a atenção mundial e recebeu diversos prêmios pela luta pela Amazônia. Ele é considerado o primeiro militante ambiental em âmbito mundial. No Brasil, ao contrário, fez muitos inimigos por conta dos boicotes ao latifúndio e assim foi jurado de morte, mas antes de ser assassinado ele fez um dossiê (entregue nos quatros cantos do Brasil) de quem o mataria: latifundiários, políticos e empresários, mas de nada serviu, esses mesmos foram os responsáveis pela sua morte em 22 de dezembro de 1988. Apesar de ter criado uma metodologia de educação nos moldes de Paulo Freire e alfabetizar toda a comunidade, não surgiu outro Chico e o movimento com o tempo está sendo calado. No entanto, sua luta não foi em vão, conseguiu transformar muitas áreas que seriam devastadas em áreas de proteção. Para uma delas que eu seguia agora, Seringal Cachoeira.

Vídeo 9.1: Música em homenagem ao Chico Mendes da banda mexicana Maná.

"Canto do mundo esquecido, condenado a dias iguais. Onde vozes não são ouvidas e direitos são violados. Um dia, como outro qualquer, perdido no passado e remetido pelos sem vozes. Naquele dia em que a voz enterrada venceu o silêncio. O mundo se curvou ao ninguém, filho do nada. Seu grito sacudiu o planeta e uma bala foi disparada. O homem caiu e sua voz ecoa pela eternidade. Chico Mendes Vive!" Notas de Diário

O seringal fica uns 30 km da cidade. O caminho, por uma estrada de terra batida, parece não ter fim. Aqui a natureza é selvagem. A estrada corta a floresta e a comunidade do seringal mora em harmonia com a natureza. Pelo caminho é possível ver árvores gigantescas, algumas lagoas e muito verde. Cheguei ao seringal Cachoeira e logo conheci Nilson, o homem da floresta. Nilson é um senhor que viveu a vida toda em Xapuri, conhece a floresta com a palma da mão. A história passou por seus olhos e também participou dos empates. Dono de um coração enorme me acolheu junto a sua família como a um filho.

Curiosidade 9.1: Agora em casa, descobri que o Nilson é citado em dois livros sobre a vida de Chico Mendes, além de ter sido guia para a Globo, Discovery Channel, BBC, entre outros.

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A experiência dentro da floresta amazônica foi um misto de medo e de encantamento. Agora, por fim, estava no coração da floresta. Nilson era uma companhia perfeita, conhecia todas as plantas, animais e cantos do lugar. Tinha a paciência de me explicar tudo. Ele conhece centenas de remédios naturais, utilizando apenas as plantas da região. Queria lembrar todos os nomes das plantas, de todos os remédios naturais, mas não consigo. Neste dia, caminhamos por muitas horas. Tive a oportunidade de ver dezenas de seringueiras (árvores utilizadas na extração do látex). No meio do caminho o Nilson extraiu o palmito de uma palmeira que nos serviu de refeição durante a caminhada. Depois de um bom tempo e cheio de evidências de onça por perto, perguntei o nome de um pássaro com um som bem característico. Esse som nos acompanhava desde sempre. Nilson na maior tranqüilidade, disse que era o pássaro (que não me recordo o nome) que indica a proximidade de onça. Não fiquei muito feliz com a noticia. Passei a ter medo. Ele dizia que onças só são agressivas por dois motivos: comida e filhos. Disse que não fazíamos parte do cardápio. O problema seria encontrar os filhotes, assim, teríamos problemas de verdade. No fim não cruzamos com nenhuma. Às quatro horas da tarde no meio da selva quase não se enxerga mais e assim voltamos.

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"Caminhava tateando o ar, embora se movesse por entre as coisas com uma fluidez inexplicável, como se estivesse dotado de um instinto de orientação baseado em pressentimentos imediatos" Cem anos de solidão, Gabriel Garcia Marquez

Dentro da floresta densa pouco se vê. Sabe-se que existem centenas de animais a volta, mas o raio de visão é muito pequeno, além da camuflagem. Achava que estando ali. Onde as árvores são gigantes. Onde a floresta está intacta. Onde não existem trilhas. Teria a oportunidade de ver a vida selvagem das mais diversas formas. Pouco vi dos animais. Por azar ou sorte. A beleza que fica dessa experiência são as sensações. Os sons são muitos, não existe silêncio nunca. A harmonia dos sons de insetos, pássaros e macacos são assustadores, mas muito bonito de ouvir-se. A beleza de cada canto. Observar a vida no seu estado mais puro. Sentir que tudo o que é preciso para a vida está ali em extrema abundância. Sem frivolidades.

Curiosidade 9.2: Aqui foi a região da Amazônia em que vi as maiores árvores.

Nilson costuma dizer que ensinar sobre a importância da Amazônia era seu dever. Lembro de um fim de tarde, sentados no seu quintal floresta, ele me perguntou se eu já tinha visto um cateto. Cateto é um tipo de porco selvagem. Disse que não conhecia. Ele começou a gritar e fazer uns barulhos esquisitos. Depois de alguns minutos chegou um bando de catetos. Nilson disse que eram seus amigos. Eu acreditei. Os catetos são brigões entre eles. Depois da aparição e de algumas brigas eles logo correram para a proteção da floresta.

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Depois conheci Xapuri com mais calma. Visitei o museu Chico Mendes, a casa do Chico, o rio Acre e tudo mais. Do meu objetivo social da viagem, Xapuri foi sem dúvida o mais importante. Foram poucos dias, mas intensos. Conhecer outro estilo de vida. Acompanhar a vida de alguns seringueiros, ficar no seringal, adentrar algumas vezes na floresta e conhecer uma grande pessoa como o Nilson, faz desses dias talvez os mais especiais de todos.

Culinária 9.1: Um prato feito em Xapuri, custa por volta de dez reais. Geralmente, vem uma travessa de arroz que serviria facilmente umas cinco pessoas, um balde de feijão, uma travessa de salada e um peixe gigantesco, além de um litro de suco de cupuaçu.

Curiosidade 9.3: O nível educacional de Xapuri é alto, principalmente nos seringais, foi muitas pessoas que conheci com ensino superior, algumas com mais de uma graduação. Não que um diploma importa, mas são pessoas realmente articuladas.

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Segui para Rio Branco, onde fiquei um dia inteiro, caminhando sem rumo e observando cada palmo daquele lugar que logo me despediria. Gostei muito da cidade, o mercado velho é um lugar agradável para se estar.

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Depois retornei para Porto Velho, pois pegaria o barco com destino para Manaus.

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Parte 10: Viajando pelo rio Madeira

Nunca antes tinha passado mais que cinco horas em um barco. Agora ficaria cinco dias viajando pelo rio Madeira, saindo de Porto Velho com destino a Manaus. Iria passar meu ano novo navegando pelo Madeirão, me sentia um Amyr Klink.

“Um homem precisa viajar. Por sua conta, não por meio de histórias, imagens, livros ou TV. Precisa viajar por si, com seus olhos e pés, para entender o que é seu. Para um dia plantar as suas próprias árvores e dar-lhes valor. Conhecer o frio para desfrutar o calor. E o oposto. Sentir a distância e o desabrigo para estar bem sob o próprio teto. Um homem precisa viajar para lugares que não conhece para quebrar essa arrogância que nos faz ver o mundo como o imaginamos, e não simplesmente como é ou pode ser. Que nos faz professores e doutores do que não vimos, quando deveríamos ser alunos, e simplesmente ir ver” Mar sem fim, Amyr Klink

Antes passei a manhã na casa do Pedro. Depois de muitos dias na companhia de sua família era hora de partir. Triste caminhar sozinho agora e deixar a família que mais foi minha família nessa viagem. Chegando ao barco, junto com o Pedrão e o Hugão, mal sabia armar a minha rede (presente da Zilma). Um cara da marinha mercante me ensinou a colocar a rede de uma forma segura. Ensinamento usado diversas vezes depois. Agora estava sentado na rede do barco e aguardava a autorização da marinha para o barco seguir viagem.

Informação 10.1: Paguei o preço de R$160 na passagem com alimentação inclusa. O valor da passagem é totalmente negociável. O preço inicial era de R$220, mas depois de conversar um pouco consegui baixar o preço. Conheci pessoas que pagaram na mesma viagem os R$220 iniciais e pessoas que pagaram R$150.

Informação 10.2: Diferente das viagens pelo rio Amazonas, nas viagens pelo rio Madeira a alimentação é inclusa na passagem.

Informação 10.3: Existem dois tipos de embarcações que fazem o trajeto. O modo mais rápido é o barco de passageiros que leva “apenas” três dias, no entanto, essa opção é abarrotada de pessoas, quase não há lugar para se colocar a rede. A outra opção é o barco cargueiro, que demora cinco dias, a diferença é que tem poucos passageiros, podendo caminhar pelo barco tranquilamente e tendo espaço de sobra para a rede. Eu acabei indo com o barco cargueiro, mas não sabia das opções, fiquei sabendo quando já estava viajando. As duas opções têm alimentação inclusa e o preço é o mesmo.

Informação 10.4: Lembrando que o sentido que fiz essa viagem, acompanha o sentido do rio. Assim a viagem é mais rápida. Caso faça o sentido contrário o tempo de viagem é dobrado.

Informação 10.5: O rio madeira é um dos vinte maiores rios do mundo. Tem mais de três mil quilômetros de extensão e é um dos principais afluentes do rio Amazonas.

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Quando caiu a noite ainda estávamos esperando a autorização da marinha. Logo cai no sono. No primeiro brilho do dia acordei animado para ver o barco em movimento. Ao acordar percebi que estávamos no mesmo lugar. O capitão do barco teve um mal súbito durante a noite. Ele foi levado para o hospital e nunca mais soube dele. Ficamos toda a manhã aguardando um novo capitão. Nesse tempo fiquei vendo o pessoal da cozinha atirar restos de comida no rio e um cardume infinito pulando fora da água por causa da comida. Isso é das coisas mais incríveis que já pude presenciar. Apesar de parado estava feliz. Depois de muita apreensão, por conta do capitão, seguíamos nosso rumo. O engraçado que enquanto a situação não se resolvia os passageiros quase não se conversavam, foi passar os primeiros metros da viagem e a conversa tomou o barco. Minha primeira experiência na navegação de cabotagem começava.

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O barco devia ter uns quarenta passageiros e oito tripulantes. Os barcos de passageiros saíram com mais de duzentas pessoas e eram bem menores. Apesar dos dias a mais de viagem, me senti com sorte de estar no barco que eu estava. O barco tinha três andares. Na parte mais baixa ficava toda a carga. Levava-se todo o tipo de carga, desde carro a cachos de bananas. No andar da proa fica a cozinha, a área comum e a área dos passageiros, além dos banheiros. No piso superior fica o bar, a cabine do capitão e a área dos tripulantes.

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A alimentação é pouco variada. Tendo carne bovina no almoço e frango no jantar. Sempre assim. Os acompanhamentos não mudam, sendo feijão, arroz, farinha e um pouco de salada. Existe um bar no piso superior que vende salgadinhos, refrigerantes, cervejas, salgados, água e tudo mais, mas os preços são abusivos. Também está incluso café da manhã. Os horários das refeições são fixos e inflexíveis. Perdeu a hora de comer, ficou sem comer. No entanto, a comida servida é mais que suficiente, pois os passageiros da embarcação quase não gastam energia durante a viagem. Quase o tempo todo estará deitado na rede.

Como a embarcação era grande, ela não parava nos portos dos vilarejos pelo caminho. Fazendo da viagem um pouco monótona. A vida no barco é como em uma cidade pequena. Todos acabam se conhecendo por força da situação. No terceiro dia todos já estão íntimos e todos conhecem a história de vida de todos. O que quebra a rotina dos dias são os botos. Em alguns momentos eles acompanham o barco. Fazendo a felicidade de todos. Outra coisa que quebra a rotina são os olhos incandescentes dos jacarés pela noite, principalmente nos trechos estreitos do rio. A paisagem pouco muda durante os dias da viagem. Ás vezes surge algumas comunidades ribeirinhas. Ás vezes aparece algumas ilhotas que embelezam o caminho. A mata ciliar pouco muda, as árvores são mais baixas do que eu imaginava. No entanto, o rio muda muitas vezes de cores e tem horas que parece estar navegando em um pântano, pela quantidade de barro na água.

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Antes de me despedir de Porto Velho a Zilma entregou-me chocolates e balas para entregar no ano novo para as crianças da embarcação. No dia da entrega, quando tirei o saco de chocolate da mala, quase fui pisoteado, talvez seja a maior expressão de alegria que vi nessa viagem. Muito das pessoas que lá estavam são pessoas sem posses que vivem em vilarejos e comem o que a floresta oferece. Fiquei espantando no poder de alguns doces, mas feliz por levar alguns segundos de felicidades para eles. Isso graças a Zilma.

“Hoje vieram me perguntar se eu era rico ou coisa do tipo. Dei risada. Deve ser por causa dos chocolates e balas. Disse que era presente de uma mulher com um coração enorme.” Notas de Diário

A maior surpresa navegando pelas as águas do rio Madeira foi conhecer o Paulo. Ele era um publicitário chileno e largou a vida de empresário bem sucedido no Chile para encontrar algum sentido na vida. Por coincidência do destino a viagem dele se iniciou no mesmo dia que a minha (primeiro de outubro). Toda viagem “sola” tem um sentido maior. No meu caso era algo mais social, já a dele era totalmente espiritual. Ele buscava a todo o momento o autoconhecimento. O mais interessante que ele é casado, sua mulher seguiu viagem para o sul da América do Sul e ele pelo norte da América do Sul. Os dois buscam a mesma coisa em lugares diferentes e se nada mudar dentro deles, no retorno ainda esperam ficar juntos.

"Cenários desabarem é coisa que acontece. Acordar, bonde, quadro horas no escritório ou na fábrica, almoço, bonde, quatro horas de trabalho, jantar, sono e segunda terça quarta quinta sexta e sábado no mesmo ritmo, um percurso que transcorre sem problemas a maior parte do tempo. Um belo dia, surge o “por quê” e tudo começa a entrar numa lassidão tingida de assombro. “Começa”, isto é o importante. A lassidão está ao final dos atos de uma vida maquinal, mas inaugura ao mesmo tempo um movimento da consciência." O mito de sísifo, Albert Camus

As minhas melhores conversas foram a bordo deste barco com o Paulo. Sem muita coisa a se fazer no barco, passávamos quase o dia todo contando histórias de viagem, da vida, família e tudo mais. Lembro-me quando ele me contou a história do dono da lua. Um chileno na década de 60, no auge das patentes, patenteou a lua como se fosse dele. O engraçado de tudo isso foi que o presidente americano Nixon antes da Apollo 11 pousar na lua, teve que pedir ao chileno “permissão” para o pouso. E claro, que o cara autorizou Neil Armstrong a pisar pela primeira vez na lua. Acho esse ato muito simbólico, o sistema sendo quebrado pelo sistema. Depois da morte do bravo chileno foi definido que ninguém poderia ser dono da lua. O humor do Paulo contando essa história é demais.

O Paulo é daqueles casos onde a repetição trás o talento. Ele dizia que não sabia nada sobre artesanato e artes. Seu sonho era viver das habilidades de suas mãos. A todo o momento ele estava aprendendo/tentando costurar ou a pintar ou a escrever. Depois de três meses de viagem já conseguia produzir muita coisa, apesar de ainda não conseguir subsistir viajando. Acredito que com sua insistência logo ele consiga.

Existem viagens de barco pela Amazônia que duram mais que trinta dias. Ouvi histórias de pessoas que entraram solteiras nessas viagens e saíram casadas. Foi mais de uma história. Isso da para se ter noção de como se vive uma vida dentro do barco. Na nossa viagem, pelo que eu sei não se formou nenhum casal.

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A parte negativa dessa viagem foi à falta de sintonia da tripulação com a natureza e principalmente com o rio. Todo tipo de lixo era lançado fora do barco. Tentei algumas vezes falar com a tripulação, de nada adiantava. A maioria dos passageiros, pelo contrário, guardavam seus lixos para estes não serem lançados pelos tripulantes na água.

O legal que as mulheres da embarcação fizeram do barco, no último dia, um salão de beleza. Todas cortaram o cabelo. Maquiaram-se. Trocaram roupas entre si. Todas queriam estar bonitas no primeiro dia do ano em terra.

Passar o ano novo sem percebê-lo, rodeado de novos amigos e como plano de fundo a imensidão do rio Madeira e da floresta, foi mais especial que eu poderia imaginar. Fez-me ter mais certeza na simplicidade da vida. Viver conforme a luz do dia é outra coisa que me surpreendeu. Acordar ao primeiro sinal de luz e dormir assim que a noite cair. Foram seis dias (um parado e os outros viajando) dentro de um barco, mas mais se pareceu com uma vida. Ter oportunidade de conhecer pessoas tão intima da natureza. Ouvir histórias de vidas que tanto se diferem da minha. Foi um aprendizado constante. Viver sem a pressa dos dias e apenas esperar. Confesso que no inicio tive medo da viagem, mas ao ver as luzes de Manaus se aproximando, a tristeza tomou conta de mim, não queria nunca que aquele barco atracasse.

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Chegamos num domingo cerca de 8 horas da noite em Manaus, como o barco iria ficar atracado no porto, eu, Paulo e uma família resolvemos dormir no barco para economizar uma estadia. Enquanto o Paulo foi procurar frutas para o jantar eu fiz uma bola de rede (que alguém esqueceu). Paulo chegou com duas melancias que comemos em segundos e depois jogamos futebol no barco. Todos os que restavam no barco jogaram. Foi um Fla-Fu dos mais disputados. Desde a senhorinha até o gurizinho. A partida mais democrática do futebol acabou sem um vencedor com o placar de 2 x 2.

Dica 10.1: Os portos são bons lugares para quem quiser economizar com estadia. Os barcos ficam atracados e geralmente é tranqüilo colocar a rede e passar a noite neles.

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No dia seguinte nos despedimos da família. Paulo e eu saímos do porto caminhando. Agora estávamos em terra firme e precisávamos arrumar algum lugar para ficar.

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Parte 11: de Manaus a Roraima

Nos primeiros passos em Manaus já começava a perceber algo que iria me incomodar na cidade. A cidade tem uma belíssima arquitetura da belle èpoque da borracha. Porém, a maioria da arquitetura desta época está tampada por prédios comerciais ou estão em desarmonia com a cidade que cresceu à volta.

"Perder tempo a explicar por que gosta seria pouco menos que inútil, há coisas na vida que se definem por si mesmas, um certo homem, uma certa mulher, uma certa palavra, um certo momento, bastaria que assim o tivéssemos enunciado para que toda a gente percebesse de que se tratava, mas outras coisas há, e que até poderão ser o mesmo homem e a mesma mulher, a mesma palavra e o mesmo momento, que, olhadas de um ângulo diferente, a uma luz diferente, passam a determinar dúvidas e perplexidades, sinais inquietos, uma insólita palpitação..." A caverna, José Saramago

Depois de caminhar por algumas horas, eu e o Paulo, paramos em um hostel próximo ao Teatro Amazonas. Deixamos nossas coisas. O Paulo seguiu para um sitio nos arredores da cidade. Ele tinha ouvido falar do dono do lugar (uma pessoa no barco havia indicado) e iria ver se era possível trocar hospedagem por trabalho. Nesse dia eu não perdi tempo e fui tentar conhecer um pouco da cidade.

Uma tática que eu tenho para me familiarizar com as grandes cidades de forma barata é andar de ônibus circular intensamente. Vou até um terminal de ônibus, entro em um ônibus e faço todo o trajeto dele até voltar no terminal. Geralmente, nesses terminais o transfer é gratuito. E assim, pego diversos ônibus e vou para diversas regiões, vendo a cidade pela janela do ônibus e assim me familiarizo com a cidade e fico mais seguro em caminhar. Isso tudo pelo preço de uma passagem apenas. Pode parecer programa de bobo, mas para um cara observador como eu, ajuda muito.

De noite já com a companhia do Paulo, compramos cervejas e ficamos bebendo na frente do Teatro Amazonas. O teatro, realmente, é muito bonito, mas estava com uns enfeites de Natal deixando o teatro menos bonito. Todo o entorno do teatro é chamativo, com uma bela praça, muitos restaurantes e bares fazem daquele pedaço de terra um lugar que aglomera os mais variados tipos de pessoas, ou seja, um bom lugar de se estar, principalmente pela noite.

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No outro dia fomos ao Ceasa para pegar uma voadeira e navegar pelo rio Amazonas. Negociamos com um barqueiro. Combinamos com o mesmo de conhecer o encontro dos rios Negro e Solimões e passar por uma comunidade ribeirinha no rio Negro. Fechamos o passeio por um valor total de oitenta reais. Assim, seguimos para o encontro das águas, não antes de abastecer em um posto flutuante.

Informação 11.1: As agências cobram em média R$150 por pessoa pelo passeio do encontro das águas (em um barco cheio). O jeito mais barato é pegar um ônibus até o Ceasa e lá negociar diretamente com o barqueiro. Se você for apenas visitar o encontro das águas, consegue-se um barco com até dez lugares por cinquenta reais (preço do barco).

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O encontro do rio Solimões com o rio Negro resulta na maior bacia hidrográfica do mundo vulgo rio Amazonas. Dependendo de como se considera a nascente do Amazonas ele também pode ser considerado o rio mais extenso do mundo, mas isso gera algumas controvérsias e nos livros o Nilo fica com o título de rio mais extenso do mundo, deixando o Amazonas em segundo lugar. Isso pouco importa na verdade, o que importa é preservar e reconhecer aquela beleza sem limites.

O rio Negro parece feito de petróleo de tão escuro e a temperatura de sua água é mais agradável. O rio Solimões é barrento, sua água é muito mais fria e o seu curso de água é duas vezes mais rápido que o rio Negro. Na linha natural que os dois rios se encontram e assim, não podem se misturar por serem tão diferentes. Eles caminham lado a lado por cerca de quarenta quilômetros sem se misturar. Depois disso o rio Negro parece desaparecer ao encontro do Solimões. Bom, mas nada é melhor que estar no encontro destes rios. Com toda certeza é uma sensação única. Ficar com o barco parado na linha exata que separa o Solimões do Negro e colocar uma perna em cada rio e poder sentir a diferença dos dois em sua pele é algo que não tem como expressar em palavras. A natureza sempre é bela, mas em alguns lugares ela é caprichosa demais. Estar ali, naquele momento, sentindo e vendo da minha forma o que eu sonhava em fazer desde criança me deixou muito feliz. Feliz de verdade.

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“Lembro das tantas vezes que havia planejado estar em Manaus, somente para ir ao encontro das águas. Não me recordo como esse desejo nasceu só sabia que ele existia. Pois agora não existe mais, estou aqui.” Notas de Diário

Depois seguimos conhecer uma comunidade ribeirinha no rio Negro. Tivemos a oportunidade de conversar com algumas pessoas. Sempre que estou numa comunidade ribeirinha fico surpreendido com o tamanho respeito que todos têm pela natureza. Cada vez tenho mais admiro essas pessoas e toda vez fico mais revoltado ao ver como são tratados com descaso pela grande maioria da população. Seguimos e pela primeira vez vi uma igreja flutuante. Paramos num igarapé. Tivemos sorte, pois estávamos somente eu, Paulo e o barqueiro que era gente boa demais. Demoramos o tempo necessário em cada lugar.

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O Paulo iria seguir para o sitio no próximo dia e resolvi partir para Boa Vista, eu teria que voltar para Manaus no futuro, pois iria descer de barco o rio Amazonas.

No outro dia nos despedimos. Paulo foi o meu irmão de alma nessa viagem, aprendi muita coisa com ele, principalmente na forma de encarar a vida. Foi outra despedida difícil, mas os viajantes se encontram e logo se desencontram, para num futuro se encontrarem novamente. E assim seguia a viagem.

Segui para a escondida rodoviária de Manaus. Rodoviária em Manaus é um pouco vazia e sem muitos destinos, pelo fato da região ser rodeada de rios faz o barco e o avião os meios de locomoção mais utilizados para grandes distâncias. Comprei minha passagem, esperei por algumas horas e parti.

Cheguei a Boa Vista no inicio do dia. Nathy e sua família me esperavam, contatei-a pelo couhsurfing e ela desde o inicio foi muito pronta comigo. Que sorte de encontrá-la.

Nathy está quase se formando em Relações Internacionais, já morou na Espanha, Indonésia e é apaixonada pela Tailândia. Sempre alegre, ela é a simpatia em pessoa. Eu e ela temos o gosto literário muito parecido e isso nos fez aproximar rapidamente. Ela já é calejada de couchsurfing, já foi hospedada e já hospedou muitas vezes. Ela me contou boas histórias sobre os pedidos de hospedagem que chegam a ela no couchsurfing . Tem uma galera sem o mínimo de noção por ai, acham que a comunidade é uma rede hotel e que é apenas informar a data e chegar. O jeito dela contando sobre esses pedidos é muito engraçado.

No primeiro dia na cidade, Nathy me mostrou toda a parte turística e depois na companhia do seu primo Patrício seguimos para um igarapé no entorno de Boa Vista. Foi um role massa demais. O lugar é de um verde muito intenso. Levamos algumas cervejas e ficamos de bobeira pelo resto do dia, conversando, nadando e explorando um pouco daquela beleza.

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No outro dia fomos numa prainha de rio, toda bonita. A cidade não chega a ser quente como Cuiabá ou Manaus, mas é muito quente também. Os igarapés e as prainhas são as melhores opções de lazer e para se livrar do calor.

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Depois fomos ver o por do sol no parque. Com toda certeza, os fins de tarde no estado de Roraima são os mais bonitos. Deve ser pela proximidade da linha do Equador, tem-se a impressão que o sol é muito maior naquela região e todo fim da tarde é um espetáculo a parte. Terminamos o dia no melhor bar de todos, o litrão da Brahma custava R$3,50, em companhia de muitos amigos da Nathy.

Informação 11.2: Roraima é o estado menos populoso do país. E grande parte do seu território é reserva indígena.

Informação 11.3: Existem apenas 15 cidades no estado de Roraima.

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Boa Vista é toda organizada, achei o clima agradável, apesar de quente. Venta bastante. O entorno da cidade é rico em igarapés e o centro é todo conservado e limpo. O melhor de tudo é o sensacional por do sol. Com certeza, Boa Vista é a capital mais charmosa dos estados do norte.

Informação 11.4: Estando em Boa Vista você estará no máximo duas horas (de carro) de dois países, Guiana e Venezuela.

Curiosidade 11.1: Ao contrário do que se pensa, a cidade de Oiapoque no Amapá não é a cidade mais ao norte do Brasil. Essa cidade se chama Uiramutã e fica no estado de Roraima.

Depois de dois bons dias em Boa Vista eu seguiria para a Venezuela. O trajeto Boa Vista-Pacaraima (cidade brasileira que faz divisa com a Venezuela) deve ser o único (no Brasil) que ir de táxi é o mesmo preço que ir de ônibus. Isso porque os taxistas abastecem os carros em Santa Elena do Uairen, na Venezuela, a preço de quarenta centavos o litro da gasolina.

Nathy me deixou no ponto de táxi. Foram poucos dias na companhia dela, mas foi outra despedida difícil, mas já estava ficando calejado com despedidas. Ficou um sentimento de um até breve, e certamente iria sentir muitas saudades.

Peguei o táxi e segui rumo a Pacaraima, o valor do táxi é de R$35. Dentro do táxi tinha um casal que viajaria para as islas Margaritas e outro casal que iria para Colômbia. Todo o trajeto é muito bonito, vai saindo o verde e entra uma paisagem de savana, afinal estávamos ficando cada vez mais próximo da Gran Sabana. O casal que seguiria para Colômbia ficou na cidade de Pacaraima, enquanto eu e outro casal fomos para a aduana venezuelana.

Curiosidade 11.2: No trajeto Boa Vista-Pacaraima tem um trecho (próximo de Pacaraima) que é descida e ao parar o carro, ao invés de o carro descer (que seria o natural) ele sobe. Estranho demais.

“O verde tão intenso agora dá lugar há um misto de savana e deserto. Tudo muda muito rápido.” Notas de Diário

Chegando na fila (imensa por sinal), conversando com os dois percebi que eles só estavam com a carteira de motorista. Como se sabe, a carteira de motorista não é aceita como um documento para transitar nos países da América do sul. Os documentos aceitos são o RG ou passaporte. Fiquei com dó deles, suas férias iriam por água abaixo, por uma pequena falta de informação. Na fila ficamos sabendo que na aduana venezuelana tudo se resolve por vinte e cinco reais e eles resolveram tentar. Eu fiquei meio cético deles conseguirem ingressar na Venezuela com as carteiras de motorista. Aguardei eles saírem do trailer (aduana) e no final cinquenta reais foi o valor pago de propina para eles conseguirem tirar o permiso e assim, estavam livres para seguir viagem.

Dica 11.1: Ao cruzar a fronteira Brasil-Venezuela por Pacaraima - Santa Elena do Uiaren, opte em utilizar o RG nos tramites. Com o RG somente é necessário dar entrada na aduana venezuelana. Com o passaporte é necessário dar saída na aduana brasileira para depois dar entrada na aduana venezuelana. Levando em conta que você pode ficar quase um dia em cada aduana, passar com o RG irá facilitar sua vida na ida e na volta (pois o processo é o mesmo).

Informação 11.5: A aduana venezuelana é um caos, lá se vende lugar na fila (umas tiazinhas) e geralmente isso gera brigas. Eu mesmo presenciei várias brigas e dependendo do humor do pessoal tendo brigas eles fecham a aduana no dia, complicando ainda mais a entrada.

Informação 11.6: Tudo é negociável na aduana venezuelana, presenciei vários trambiques. Eu realmente acho deplorável o suborno, mas estou aqui para dar informações.

Informação 11.7: Os táxis na Venezuela são realmente baratos, da aduana até Santa Elena do Uarien tem 10 km distância. Os taxistas venezuelanos cobram dois reais pelo trajeto.

Informação 11.8: Tem muitos taxistas na aduana que vendem viagens para todos os lugares, vá para Santa Elena primeiro, e de lá você vai conseguir melhores preços, além de ter a opção do ônibus.

Pegamos um táxi e seguimos juntos para Santa Elena de Uairen, na Venezuela.

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Diego,

Nem sei exatamente o que dizer... A ideia, a viagem, os lugares, a forma escrita, as memórias... tudo excelente.

De alguma forma me cativou bastante, é das melhores coisas que já li por aqui. Espalhei para os amigos.

Por favor, não pare de postar, siga até o fim! Parabéns mesmo!

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Diego,

Nem sei exatamente o que dizer... A ideia, a viagem, os lugares, a forma escrita, as memórias... tudo excelente.

De alguma forma me cativou bastante, é das melhores coisas que já li por aqui. Espalhei para os amigos.

Por favor, não pare de postar, siga até o fim! Parabéns mesmo!

 

Muito obrigado pelas palavras. Fico muito feliz de saber que você está lendo e gostando. Sobre a continuidade fica tranquila, não começaria se não fosse terminar.

 

@mcm muita paz pra ti!

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