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EXPEDIÇÃO - Vale do Rio São Lourencinho - "A travessia pelo Vale do Inferno"


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  • Colaboradores

Faltava uma semana para o feriado de Carnaval de 2017 quando decidi aceitar o convite de encarar um dos maiores desafios já proposto em minha vidinha de explorador: descer o vale do Rio São Lourencinho, localizado entre os limites de Juquitiba e a planície litorânea de Peruíbe/SP, em um corte longitudinal no meio da Serra do Mar, e colocá-lo no ranking das grandes e audaciosas travessias que cruzam o mundo selvagem da "Grande Muralha."

 

Sem entender o "porquê", nem o "pra quê," me contentei com a honra de ser um dos escolhidos para tal feito. Pois éramos um time forte em questão de experiência, bravura e determinação. O grupo estava formado por: Daniel Trovo, Divanei Goes, Eduardo Loures, Marcos Prince, Rafael S Lima, Silvester Natan e Eu (Vgn Vagner), era um "DREAM TEAM" pronto para encarar qualquer pauleira que viesse pela frente, era um time que entrava em campo de combate com a confiança em alta. E essa confiança demasiada era o grande erro da trupe. Pois a Serra do Mar preparava uma grande surpresa para testar suas habilidades, sua resistência física e o controle emocional/psicológico de cada integrante. "Ela" iria nos castigar de uma forma em que iríamos sair de lá aos farrapos, com mais ferimentos na alma do que as lesões que marcaram a carne. E sem poder prever o destino, lá ia um bando de marmanjos com suas mochilas cheias de vocação para se lascarem da cabeça aos pés. rs

 

Outros enviados do mesmo clã, duas vezes, já haviam feito suas tentativas em atravessar aquele vale de fora à fora em um expedição pelo "Inferno Verde". A segunda equipe foi a que mais rendeu resultados positivos voltados ao objetivo. Pois conseguiram chegar ao leito do Rio sob uma chuva descomunal. Mas a força bruta das águas que corria violentamente por aquele vale fez com que o grupo abortasse a missão e reduzissem a jornada apenas pelas nascentes do Rio. Com o nível, no mínimo, 1 metro acima do normal e potência máxima, seria suicídio prosseguir. Restou como alternativa o grupo engolir seus anseios e se contentar com o viram, voltar para sua casa e aguardar uma nova data para uma nova tentativa.

 

E a data escolhida foi: 24/02/2017 - feriado de Carnaval.

 

Confesso que aquele rio nunca me despertou interesse. Das vezes que tentaram cruzá-lo, mesmo sendo convidado, não me interessei. Mesmo na vez em que pude ir não tive aqueeeela empolgação. Os afazeres no trabalho também não me davam uma folguinha para que eu pudesse vasculhar o mapa junto aos envolvidos, estudar com veemência os desníveis mais acentuados, a quilometragem do leito a ser percorrida, curvas de nível, ponto de fuga e etc... Apenas confiei no faro, experiência e competência dos envolvidos, e confirmei minha presença naquilo que seria, mesmo sendo desconhecido por todos, a mais bela e tortuosa travessia que cada integrante do grupo já enfrentou pela Serra do Mar.

 

São Paulo, 24 de Fevereiro, de 2017 - sexta feira, 18h.

 

As trombetas do Armagedom já anunciavam o início do fim. Uma chuva, uma tempestade absurdamente forte veio a despencar e alagar toda São Paulo/Capital em plena data de início de nossa aventura, pouco antes do horário de encontro. Ruas viraram rios, carros eram levados pela correnteza, avenidas e marginais ficaram totalmente intransitáveis. Com essa situação caótica, o atraso era inevitável. Principalmente para o Divanei, que vinha do interior paulista em ônibus rodoviário.

 

Quando cheguei ao local de encontro, já estavam por lá Natan e Prince. Natan ao celular confabulava com o cara responsável por nos levar até o bairro rural de Pedra Lisa, início de nossa odisseia. Mas, como as coisas estavam apenas começando, a notícia não poderia ser das melhores. O Rapaz disse que o câmbio da Kombi havia quebrado. É entre uma mensagem e outra, ele disse que iria nos levar, bem que fosse em um carro pequeno e em duas viagens. Mas o maldito ficou apenas nas mensagens, e nunca mais deu sinal de vida. Preocupado com o nosso pontapé inicial não chegar a existir, Natan ainda tentou outros contatos de Vans que, talvez, pudessem nos levar há tempo de colocar o plano em prática ainda naquela noite de sexta feira. Mas as tentativas foram em vão. A solução foi aguardar os demais integrantes do grupo chegarem para poder tramar alguma rota com os ônibus locais entre a Capital e Juquitiba.

 

No Largo da Batata/Pinheiros embarcamos num ônibus, pra depois de 50 minutos aproximadamente desembarcarmos em frente ao batalhão da PM para tomar outro ônibus. Estávamos com sorte! Pois o coletivo tem um intervalo de cerca de 1h, e não deu nem 5 minutos para vir o próximo. Com as mochilas largadas no piso do ônibus tomamos de conta o corredor de circulação, e entre muita conversas e risadas seguimos até o nosso último desembarque às beiradas da rodovia Régis Bittencourt. Onde enfrentaríamos mais um dilema: como percorrer cerca de 20km de estrada de terra até o início da trilha?

 

Era exatamente 00h00 quando pisamos nossos pés no acostamento da via. A partir daquele momento já não tinha como retornar. Então a solução foi caçar algum boteco que estivesse aberto e barganhar algum transporte até o local desejado.

 

Em cima da passarela os mais visionários, feitos sentinelas das muralhas do antigo Carandiru, observavam o amontoado de casebres que pudessem ter algum veículo com porte para carregar 7 marmanjos + 7 cargueiras pesadíssimas. Uma delas era de 90 litros rsrs.

 

Trovo, Divanei e Prince, com cara de mocinhos e boa oratória, foram bater palmas nas casas que tinham Kombi escolar, eram 3 Kombosas, na tentativa de persuadir alguém com a alma caridosa, mas ninguém queria saber de abrir a porta pra um bando de homens com vestimentas estranhas, quando os ponteiros já estavam passando de meia noite e tralalá, rs.

 

Na esquina da estradinha com a rodovia, num breu danado, Natan, Rafael, Loures e EU começamos a abordar qualquer e todo veículo que dava seta e embicava na estradinha. Primeiro foi um Escort, beem véinho, se desmanchando aos pedaços que entrou na estrada, e quando ele voltou, não deu outra, fiz sinal e abordei o meliante que ia ao volante, dominado por substâncias ilícitas, junto à um comparsa no banco de passageiro, e uma mulher deita no banco de trás. Imagine a cena.

 

- então guerreiro, vc conhece e é morador da região?

- sou! Respondeu.

- tem como você dar um carona pra gente?

- até aonde vocês vai?

- até o bairro Pedra Lisa.

- longe pra caráleo, Mano.

- a gente faz um rateio e chega junto com uma moeda pra você. - acrescentei.

- mas depende. Quanto vocês podem dar?

 

Quando eu falei: ah, uns R $70 o olho do bichinho brilhou. Os dois comparsas incentivaram ele a fazer essa corrida, e ele, nada besta, concordou. Nem que fosse feito em duas viagens. Disse que só iria deixar o camarada e a namorada em casa, e já voltava. Nesse intervalo continuamos com as buscas. O que aparecesse primeiro a gente encarava.

 

Fiz um assobio para um motoqueiro que entrou na estradinha. O louco fez o retorno à milhão e veio nos dar atenção. Foi inocente demais, o coitado. Perguntamos se ele era da região, e se conhecia alguém que pudesse fazer o traslado. Mas ele não conhecia nenhum louco. Antes que o jovem motoqueiro desse partida para ir embora, da escuridão da estradinha de terra, surgiu a nossa última esperança. Nossa salvação. Uma caminhonete HR ocupada apenas pelo motorista e um passageiro, e carroceria vazia. A euforia foi tanta que só faltou alguém se jogar debaixo da caminhonete para que ele parasse. E quando parou, lógico, cercamos a cabine como se fossemos virá-la com os próprios braços.

 

Dei início a uma negociação mequetrefe que não motivou nem um pouco o motorista a voltar de onde tinha vindo, pois, acabavam de fazer uma entrega justamente no bairro em que íamos. Eles não estavam querendo voltar lá. Falavam que estava tarde demais, que teriam que voltar pra São Paulo, e que se chegassem tarde demais teriam que se explicar com suas mulheres, etc e tal. Estavam irredutíveis, até que, Divanei, malaco de longas datas, tomou a frente das negociações e soltou o que realmente eles queriam ouvir...

 

- leva a gente, cara. Põe um preço que a gente negocia.

 

Ainda com certo resistência, querendo ceder, insistindo em não ir. Mas o Divanei deu um xeque-mate nos caras.

 

- bom, a gente dá 200 contos pra vocês levarem a gente lá. Bora?

 

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Não deu outra. Em menos de um minuto a frente da caminhonete já estava voltada para o nosso destino, mergulhando de vez na escuridão do lugar. Quase 1h da madrugada, e lá estávamos nós, em cima de uma carroceria de caminhonete, contentes feito crianças, dando risada de tudo aquilo que vinha acontecendo pelo acaso do destino.

Detalhe: se o cara do Scort voltou, deve ter ficado muito puto com a gente, e nos rogado praga para todo o sempre. rsrs Apenas o barulho do motor, e nossas risadas, rasgavam o silêncio daquele lugar tão isolado e pacato na calada da noite. Quase sem iluminação elétrica nos postes. A luz da lua estava mais atraente. Era o cenário que tivemos que acompanhar por mais de 1h, porque, além de perdermos o caminho correto e gastar mais de meia hora para perceber isso, o terreno tinha muitos pedregulhos, ladeiras que quase tocavam o céu, outras que desciam em direção ao centro da terra. Isso tornou a viagem muito lenta e longa. Exigindo muita frenagem, ou muita força do motor.

Passado tanto chão de terra, eis que o fim da estrada chega, é hora de descer da carroçaria e por as pernas pra trabalhar. Nos despedimos de nossos anjos salvadores que, incrédulos, diziam que nós não éramos desse mundo, que não acreditavam que iríamos descer até o litoral rasgando a Serra sem haver trilha.

 

- vocês são doidos! - finalizaram.

 

As primeiras pisadas rumo ao desconhecido foram a dando continuidade por onde os carros já não passam mais. Onde luzes já não existem mais. Apenas as lanternas sobre 7 cabeças de animais não tão racionais que carregavam um mundo de coisas nas costas farejando o rastro de aventura que se encontrava naquele lugar, entre os matos mais rasteiros, charcos e atoleiros.

A ótima audição dos cães captou nosso avanço a uma longa distância, o ótimo olfato também farejou o nosso avanço exalando adrenalina (e fedor, rs). Os latidos quebraram o silêncio, denunciando que aquele seria o último obstáculo de nossa noite. Contornar um rancho ainda habitado por um senhor que às 3h da madruga veio segurar os pulguentos pra gente poder passar.

 

Mais um pouquinho de caminhada, e logo, a gente entrou numa picada à esquerda para iniciar nosso descanso, que, sem regalias, foi apenas um plástico estirado no chão, sob uma única tenda para todos, sem redes e sem isolantes térmicos. Apenas uma bivak coletivo onde vi alguns dormirem de conchinha rs.

 

Juquitiba, 25 de Fevereiro, de 2017 - sábado, 7h00

Na manhã seguinte, por conta de tanto pernilongo zunindo em nossos ouvidos, parecia que tínhamos passado a noite inteira assistindo um campeonato de Moto GP no autódromo de Interlagos. Vários tapas na "zoreia." rs

 

Depois de fazer fogo e fumaça pra espantar aquelas pragas, tomamos um cafezinho no capricho, recolhemos acampamento e perto das 10h começamos nossa marcha em direção ao afluente que deságua no largo leito do São Lourencinho. A caminhada, sempre na via que seria uma estrada, em barro duro e muito escorregadio foi feita em campo aberto. A partir dalí entraríamos num meio que iria nos manter por quatro dias sem fazer contato com familiares ou amigos, sem sinal de Smartphone. Sem socorro.

Às beiradas de uma piramba escarpada, sem outra alternativa, a não ser nos lançar no fundo de um vale, começamos uma descida forte, abrindo caminho com as mãos, se agarrando em troncos e raízes, sendo espetados por espinhos, se arranhando em farpas e pedras, escorregando em terreno orgânico e rolando morro abaixo. E a surpresa que aquele vale guardava (pra quem não tinha ido até ali), era um cenário agradável de se ver. Um leito seco e amplo, com vegetação menos espessa dando ornamento espaçado entre as árvores. Diferente de outros lugares que já pisei na Serra do Mar. Com avanço de 200 metros, aproximadamente, a vida brotava do chão, límpida e cristalina, em forma de água abundante indo na direção que tínhamos que tomar. O cenário foi ganhando leve inclinação e ficando mais bonito do que já estava. Passamos por uma "cama" feita de material nativo, construída pelo Divanei em outrora, quando esteve por ali praticando técnicas de Bushcraft com Luciano Lourenço.

 

Pequenas quedas e mini lagos rochosos iam preenchendo os meandros até o surgimento de sua fóz alimentando um dos rios mais limpos que já vi. A partir daquele momento tudo seria novidade ao grupo. Cada pedra, cada curva, cada poço, cada cachoeira, da menor até mais volumosa, tudo era inédito ao bando. A partir daquele momento estar com os pés submersos no São Lourencinho era nossa força motriz. Pois sabíamos que aquela seria uma jornada sem retrocessos. Apenas um frio na barriga por ter de enfrentar esse gigante rio, com mais de 30km de extensão em água cristalina. Uma água tão limpa que, ao entrar no rio com a minha máquina fotográfica no bolso, pude vê-la cair e ir direto ao fundo do poço, que tinha o nível na altura do peito. Pensei... lá se vai mais uma máquina engolida pelas águas da Serra do Mar. Já era, fotos, vídeos e qualquer registro pessoal que eu pudesse fazer sobre nossa aventura. Mas não foi bem assim! Só me dei o trabalho de esperar a agitação na água acalmar, e pedir pro Rafa pegá-la enquanto eu apontava sua direção. Claro que depois disso eu a amarrei em um barbante e fixei na mochila. Hehehe

 

Sem nenhum líder, sem o conhecimento de qual caminho tomar, sem trilha, fomos avançando por onde era mais óbvio, sempre tentando permanecer dentro d'água, onde era fácil andar, boiar e fazer o plano ter mais fluidez. Pulando em poços e nadando quando preciso. Mas os primeiros obstáculos que vieram dar as boas vindas eram cachoeiras de pequeno porte, com +ou- 7 ou 9 metros de altura, com o instinto, eram contornadas e vencidas na unha. Desescaladas na raça. Em uma delas pude ver o início de um acidente se formando (e se formou).

 

Estávamos indo pela margem direita, seguindo o fluxo do rio, descendo entre as rochas escorregadias, porém, cheias de agarras de apoio. O Natan achou melhor ir pela esquerda. Era uma cachoeira de aproximadamente 7 metros, que não imprimia medo, mas, poderia por tudo por água abaixo se não tomadas as devidas precauções. Havia uma leve saliência na rocha que formava um patamar. Foi esse patamar que brecou a queda do Natan quando ele tentou descer se segurando em um tronco pendurado, e tronco não aguentou. Do outro lado do rio tentei avisar, só foi o tempo de terminar de falar - créck - o tronco quebrou, e o nosso amigo despencou. Ainda bem que só foi um susto. Aliás, apenas um aquecimento para preparar o coração.

Depois desse primeiro susto foi só recreação, diversão de gente grande. Cada obstáculo que vinha pela frente era vencido com saltos partindo das cabeceiras das cachoeiras, pedras que serviam de trampolim para pularmos nos grandes/gigantescos poções que, com profundidade absurda e transparência na água, permitiam nossos pulos da altura que fosse sem medo de ser feliz. Depois era sobre deixar levar pela correnteza e procurar um ponto de saída pelas margens. O progresso do primeiro dia de expedição foi assim: desescalando dentre as águas de cachoeiras e corredeiras, contornando uma ou duas quedas varando mato, mas a dádiva do dia foi poder vencer as maiores cachoeiras lançando as mochilas na água e saltando de suas cabeceiras deixando que apenas a correnteza nos levasse pra frente. Passar um dia inteiro assim, sob um sol de rachar o coco, se divertindo feito criança e esbanjando alegria por estar vendo e vivendo algo surreal num ciclo de amizade e companheirismo, realmente, era mágico. Era tanta energia positiva pairando no ar, fazendo tudo fluir tão bem, além do que esperávamos, que jamais imaginaríamos que fosse acontecer algo de diferente de tudo isso. Mas aconteceu!

Vez ou outra, acompanhando o trajeto pelo mapa, sabíamos que teríamos um grande obstáculo pela frente. Um cânion gigantesco, abrigando uma sequência de cachoeiras de até 50 metros de altura, recebendo um afluente monstruoso pela direita, tinha de ser vencido. Só não sabíamos se seria no primeiro dia que chegaríamos de fronte a esse desafio, mas chegamos. Ali começaria uma sucessão de acontecimentos que transformaria o êxtase coletivo em inferno astral.

 

Quando avistamos uma janela se abrindo no céu, a lâmina d'água desaparecer despencando em uma cratera que se abriu em meio àquele emaranhado verde, o pensamento foi unânime: tem coisa grande pela frente. Chegamos! E a surpresa foi satisfatória. Já que pensávamos que haveria a possibilidade de não conseguirmos chegar ali no primeiro dia de caminhada. E a decisão foi vencer essa etapa já naquele mesmo dia, Já que os ponteiros ainda estavam chegando às 17h, teríamos tempo para isso. Tomamos o rumo da encosta esquerda, e fomos desescalando com cuidado e técnica a 'Cachoeira Vários Caminhos', imponente por seu tamanho e beleza singular de ter filetes escoando água por varias vias. Ao chegar em seu poção a missão nadar pela borda esquerda até um ponto onde tivemos que subir uma rocha escorregadia e sair da água antes de sermos tragados pelo funil que formava a próxima de cachoeira uns 50 metros. Cair ali seria fatal.

 

Fizemos uma pausa para contemplar aquele cenário incrivelmente belo e perigoso, tirar umas fotos e decidir por qual rumo iríamos prosseguir. À nossa frente, em ambos os lados, precipícios nos obrigaram a entrar na Mata pela esquerda e subir na base da escalaminhada um morro feroz que ia bem acima do topo da cachoeira, e depois tentar achar um caminho menos perigoso para descer até a base da grande queda. Começamos um puxa-puxa de raízes e troncos, fazendo um esforço danado para continuar subindo aos trancos e barrancos. Estávamos mais ou menos nesta sequência: Trovo, Prince, Natan, EU, Rafael, Loures e Divanei. Em certa altura, olhando para trás, tivemos uma vista exclusiva e privilegiada do grande afluente que abastece o São Lourencinho pela direita despencando há mais de 100 metros em uma robusta e volumosa queda d'água que a batizamos de Cachoeira Mãe da Serra. Ficamos boquiabertos, perplexos, com o tamanho da queda, mas o tempo de admiração foi curto. Pois o alto preço a ser pago por estarmos ali acabava de começar chegar dando inicio ao nosso momento de terror.

 

Trovo, que ia entre os primeiros, sofreu os primeiros golpes.

 

- ai. Algum bicho me picou.

 

Pensando que fosse uma aranha, ficou parado, procurando pelo bicho, porém, nada achou. Em seguida, de novo...

 

- ai, me picou de novo - enfatizou.

 

Depois foi a vez do Natan...

 

- ai, me picou também.

 

De repente...

 

Alguém gritou, COOORRE! VESPAS.

 

E começou uma correria desesperadora. Estávamos sendo atacados por um enxame de Vespas no meio da mata fechada, com o peso das mochilas nas costas, numa inclinação de terreno nada favorável que não deixava a gente correr. Ficamos presos por alguns instantes sofrendo com as picadas de várias vespas. Tentamos sair o mais rápido daquele lugar, mas estava difícil. À nossa direita havia um precipício de uns 60 metros, e cair a uma altura dessas nao seria nada legal. Saímos quebrando galhos, tropeçando em raízes, completamente desesperados por conta da intensa dor provocadas pelas picadas.

 

Loures e Divanei, que eram os últimos, conseguiram recuar. O Rafael que acabou ficando por último foi quem levou mais picadas. Era um show de horrores a gritaria que se formou na floresta. Todos gritando e gemendo enquanto tentavam correr. A dor causada pelo ferrão e pelo veneno se compara a cigarros densos apagados na pele. Uma ardência aguda e infernal. Fomos perseguidos por um bom tempo. Quando achávamos que estávamos livres, sempre aparecia alguma vespa. Tivemos que nos afastar bastante do Loures e do Divanei, pois era certo que não viriam pelo mesmo caminho. Eles saíram varando mato pra esquerda, tentando fugir do enxame. E conseguiram. Quando nos vimos a salvos, distantes daquele bando de "Satanás alados," esperamos pelos dois, que gritavam na tentativa de localizar onde estávamos.

 

Quando nos encontramos, falamos o que tinha acontecido, e por sorte os dois não foram pegos pelas vespas. Apenas perceberam que algo não ia bem quando começou a gritaria e o corre corre, a reação foi recuara o mais rápido que puderam.

 

Juntos novamente, vimos que todos estavam bem e tudo estava (aparentemente) normal, então decidimos seguir. Tomei a frente como batedor do grupo, procurando vias menos perigosas para contornar o despenhadeiro que tinha à nossa frente e chegar o quanto antes no leito do rio. O Trovo vinha dando suporte na direção a ser tomada. Fomos abrindo cada vez mais para a esquerda em diagonal (obrigados a Isso), e quando tomamos uma reta em direção ao fundo do vale, paramos para esperar o restante do grupo e permanecer todos juntos. Pois seria bom estarem todos por perto se acontecesse algo (e aconteceu).

 

Estávamos mais ou menos na metade da descida, crentes de que chegaríamos no rio sem maiores problemas, quando de repente, ouvi o Rafa gritando:

 

- abelha. Corre, corre.

 

E um novo desespero tomando conta do grupo. A galera, inclusive eu, começou a descer sem freio, um pulando por cima do outro, fazendo pedras rolarem, derrubando o que tinha pela frente. Parecia uma corrida maluca que daria 200 milhões de reais pra quem chegasse primeiro.

 

O Trovo ainda tentar disse:

 

- calma, gente. Calma!

 

- abelha, Mano. Corre, abelha - respondeu o Rafa.

 

- vai lá. Só não morre.

 

E o alvoroço continuou até o leito do rio. Onde a grande maioria conseguiu chegar sem levar ferroadas de abelhas. Já o Rafa, coitado, tinha levado um monte de picada de vespa, e com as abelhas não foi diferente. A primeira reação dele foi entrar na água para acalmar os ânimos, mas eram um choque muito forte, ter levado tantas picadas, num lugar tão ermo, sem socorro e, ainda, tentar manter a mente fria. Não teve jeito, o psicólogo dele foi abalado, e com isso vieram as lágrimas que não vieram da dor. Os fatos acabaram causando um abalo sísmico de 9 graus na estrutura do grupo. Nossa moral foi jogada no chão e pisoteada por uma manada. A gente não tinha forças para andar nem mais dez metros à frente. Era hora de encerrar as atividades do dia, montar acampamento ali mesmo e tentar se recompor para o dia seguinte. Foi isso que fizemos! Mas a tormenta estava apenas no início. Procuramos os lugares menos horríveis para acampar, mas o terreno era totalmente acidentado, sem ter 1 metro quadrado de área plana para, pelo menos, cozinhar. Nos ajeitando do jeito que deu, na encosta à beira rio, armando as redes não tão longe umas das outras.

 

Fui um dos primeiros a fazer a janta para poder ceder o fogareiro ao Rafa, que estava sem, e assim que terminei de comer fui de encontro aos companheiros, jogar conversa fora e dar um apoio moral enquanto eles cozinhavam. Mas eu não imaginava que ali começaria um dos maiores sofrimentos da minha vida. Sentei em uma pedra que, pela altura, serviu certinho como um banco. À minha esquerda o Rafael esperava sua gororóba ficar pronta, um pouco acima Divanei, com suas perninhas de grilo cruzadas, estava aberto à prosas, à minha direita Natan também tagarelava pós janta. Entre ele e eu (o perigo), o fogareiro fervia água para o macarrão do Rafa, e quando começou a borbulhar, começou a balançar. Só foi a Natan avisar pro Rafa tomar cuidado com a panela, que ela estava fervendo e balançando. Ele terminou a frase, e a panela virou toda a água fervendo em cima do meu pé, que estava calçado apenas de meias.

 

Os mais altos gritos de dor que já dei na vida ecoaram na floresta assustando qualquer bicho de hábito noturno.

 

- água, água, água... ::sos::

 

Foi a única coisa que me veio à mente no momento. E enquanto eu gritava, berrava de dor, conseguiram um restinho de água no cantil e jogaram no meu pé. Tirei a meia e tentei ser mais forte que a dor. O Natan ficou perplexo com que estava acontecendo, estava estampado em seu rosto a preocupação com o que seria de nós dali pra frente. Ele ficou tão abalado que seu semblante expressava culpa. Cheguei a pensar que foi ele quem chutou o fogareiro sem querer. Pedi pra que ele ficasse tranquilo, pois acidentes acontecem.

 

O Rafa, instantaneamente disse que perdeu a fome, em seguida começou a vomitar. Disse que foi por estar estressado. Uma reação emocional comum de seu organismo.

 

Não tinha muito o que fazer, as bolhas começavam a brotar assustadoramente no meu pé. Ainda abalado psicologicamente o Rafa enfatizou que na manhã seguinte, assim que chegássemos numa área plana, teríamos que chamar o resgate, pois não iria dar pra continuar com o meu pé daquele jeito. Mas naquele momento o que nos restava era repousar e tentar acordar o mais forte possível (moralmente falando) no domingo. Tomei 1 analgésico e anti térmico para me precaver da febre que poderia vir após a formação das bolhas, e fui deitar com muita dor. Aliás, todos foram deitar. O Natan e o Rafa tinham amarrado suas redes nas mesmas árvores, formando uma "beliche." Quando o Natan subiu na rede para deitar (créck) a árvore estalou e começou a ceder, obrigando ele a procurar outro local para armar a rede e poder descansar. O Rafa voltou a ficar nervoso, gritou de revoltado, puto da vida, e vomitou novamente. Era muito azar para uma única noite, mas não parou por aí. Todos já estavam em suas redes, com as lanternas apagadas, e o Rafa vomitando mais do que bêbado em final de festa open bar. Quando parou, ficou deitando na rede, agonizando de dor. Enquanto isso acontecia eu começava me contorcer de dor, meus gemidos clamavam por qualquer alívio que fosse. A carne queimada do meu pé começava a sofrer algum tipo de deformação para dar espaço para as bolhas crescerem. Elas ganharam volume rapidamente, eu tentei aguentar a dor, mas, os calafrios que me faziam tremer também balançavam minha rede. Tentei orar, pedir pela misericórdia de Deus para aliviar meu sofrimento, mas não conseguia me concentrar. Meu pé parecia estar em uma fornalha repleta de brasas. Os calafrios só aumentavam, eu já estava gemendo por conta de uma dor insuportável. Fui acometido por um medo de adormecer e acabar sendo surpreendido por uma hipotermia durante a madrugada fria da Serra do Mar e não acordar mais. Não aguentei... Na esperança de conseguir algum remédio para amenizar a dor, comecei a chamar pelos amigos que estavam em melhores condições. Trovo não tinha remédios, Natan também não, Loures e Prince, idem. Apenas Divanei estava munido de uma variedade de medicamentos, desde A.S à antibióticos e analgésicos. Tinha droga para dopar um Mamute em minutos. rsrs. Ministraram 35 gotas de Dipirona para eu tomar, enquanto me davam atenção avaliando a queimadura que chegou a ser de 2° grau. Tentavam conversar sobre o que seria feito na manhã seguinte, já que eu cheguei a um estágio de não conseguir mexer o pé. Trovo optou por ficar por ali, perto dos enfermos, já que teve azar de rasgar sua rede quando se deitou e ela, totalmente esticada, encostou em uma pedra e se abriu.

 

Como haviam descartado a possibilidade de chamar o Águia na manhã seguinte, apenas tentavam solucionar a questão por meios próprios, já que chamar o resgate iria demandar mais uns 5 dias. Pois não havia sinal de celular na região. Teriam que terminar a travessia, procurar por sinal, chamar e aguardar socorro, para depois voltarem ao encontro do "acampamento Cruz vermelha."

 

Duas hipóteses eram vistas com maior atenção:

 

• fazer uma maca para me transportarem por terra, e adicionar as mochilas estanque quando fosse preciso boiar pelo rio; ou

 

• cortar a frente do peitoral da minha bota (novinha), mantendo restante do pé protegido de galhos, pedras e animais. Me permitindo andar, mesmo que devagar. Nenhuma das alternativas estavam me empolgando para serem executadas. Eu achei melhor a gente descansar durante a noite, para no dia seguinte saber como iríamos proceder. De repente as náuseas apareceram sem me dar a chance de controlá-las. Deitado ali mesmo, só coloquei a cabeça de lado, e comecei a vomitar. E vomitei muito. Isso trouxe a certeza de que o Rafa não estava vomitando por estar passando nervoso, era o veneno das Vespas agindo em nossos organismos. Pelo tanto que o Rafa estava vomitando, o medo era de que ele pudesse ter convulsões durante a noite. Já que todo o castigo que estávamos recebendo parecia pouco, não seria uma surpresa se isso viesse a acontecer. Pois todos que foram picados tiveram reações ao veneno. Mais tarde o Trovo também vomitou e ficou com o intestino solto, o Natan delirava em febre somada à enjoos. Vomitei por três vezes e acabei jogando fora todo o remédio que tinha tomado. O Divanei não queria perder a chance de me matar (rs), ministrou mais "doses cavalares" de medicamentos para acabar com a minha dor e à minha raça. Quando a sessão de vômitos teve maiores intervalos, cada um foi dormir da maneira que pode, e, eu desmaiei na rede de tão fudido que estava: pé queimado, morrendo de dor, vomitando, intestino solto e dopado. Não vi nada! Foi um "Boa noite Cinderela." Eu só acordava no meio da madrugada pra cagar ou vomitar. O Rafa também.

 

Inclusive, teve um momento em que eu me levantei para vomitar, e fiz um barulho tão forte antes do "jato," que mais parecia um bicho rugindo. O Loures levantou assustado e acendeu a lanterna...

 

- o quê que é isso aí, Mano? O que tá acontecendo? Responde!

 

E eu agachado, sem poder responder, só olhava para trás. Logo ele viu de onde vinham o barulho, e pode deitar mais tranquilo. Não adiantava muita coisa ficarmos em alerta esperando algo de pior acontecer, o cenário do caos estava formado, para morrer só faltava a Dona Morte terminar de amolar sua foice e terminar o trabalho (que não era difícil de fazer). Enfermos, feridos e moribundos jogados nas redes, necessitando de cuidados médicos sem haver nenhum há quilômetros. Vômitos e fezes espalhadas por todo canto representavam o real sentido da palavra podridão. Pela altura dos acontecimentos já não existia mais força moral entre o grupo, a resistência física e psicológica já tinham ido rio baixo. Abalados conta tanta desgraça despejada sobre nós, o desejo de todos era que aquele pesadelo todo acabasse o quanto antes, e que todos pudessem sair dali com vida. E com esse desejo alojado no peito se encerrava nossa noite de terror em meio a Serra do mar.

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Serra do mar, 26 de Fevereiro, de 2017 - Domingo, 7h30

 

A luz do sol anunciava que teríamos um dia lindo pela frente. Só não sabíamos como seriam as primeiras horas desse dia, pois estávamos em recuperação estrutural depois de sair do olho do furacão, em uma noite em que fomos surrados, espancados pela força da mãe natureza. Poucos já estavam de pé, recolhendo seus pertences, agilizando seu desjejum, mas sem pressa. Todos estavam cientes que bater em retirada seria algo tardio. Trovo estava bem adiantado, com quase tudo recolhido, aguardava ansioso pela reação dos moribundos, ou temia ter de contar alguns corpos dentre os que foram atacados pela chuva de dardos envenenados. Quando levantei e me sentei na rede consegui ter uma noção do quão estava horrível o nosso acampamento. Tinha vômito e fezes por todos os lados, e um fedor de embrulhar estômago. Até cocô de alguns bichos estavam pelo chão. Algum animal de médio porte comeu os dejetos e passou mal também rsrs. Havia cocô de Jaguatirica ao lado do vômito e da rede do Rafa. Nosso garoto estava, realmente, estragado kkk. Fiquei feliz por todos os combatentes terem resistido àquele situação truculenta. Aos poucos estavam se erguendo para mais um dia de batalha. Rafa, um dos que mais preocupavam, também levantou e demonstrou que passava bem. À margem do rio avistei o Loures lavando seus itens. Me espantei com o tamanho do inchaço que ele tinha no olho esquerdo. Ele levou apenas uma picada de abelha, mas, foi o suficiente para deixá-lo cego de um olho por quase dois dias. Ileso mesmo só o Divanei, que não levou nenhuma picada de inseto em nenhum dos dois ataques. Eu já não sentia tanta dor se comparado com a noite anterior, as bolhas estavam enormes e necessitando de cuidados, era evidente que eu precisava de um médico, mas não seria preciso chamar pelos serviços do comandante Hamilton (chamar o resgate) rs.

 

Como seria demorado um curativo de proteção ao meu pé, a rapaziada (Divanei, Loures, Natan e Prince) decidiu voltar um pouco mais rio acima, não iriam deixar passar batida a oportunidade de ver uma das maiores cachoeiras do trecho (Cachoeira das Vespas), sendo que ela estava tão perto de nós. Trovo se encarregou de ser meu enfermeiro/escravo, passou vaselina pastosa na queimadura, adicionou um adesivo de silicone cedido pelo Loures, enfaixou com atadura e em seguida calcei a meia. Sempre compro meus calçados um número maior do que realmente deveria usar, isso evitou o atrito entre o couro da bota e o ferimento. Afrouxei os cadarços e consegui calçar a bota tranquilamente, sem pressionar a área do ferimento. Tomei minha dose homeopática de Dipirona para evitar a febre e deitamos no chão para relaxar enquanto a galera não chegava com as novidades. Chegaram uns 40 minutos depois, renovados e inspirando a continuação da jornada. Já era certo que seria um fardo pesado a ser carregado, eu iria sofrer! Ter que terminar aquela expedição que foi programada para findar em 4 dias, agora tinha expectativa de pelo menos 5, ou ate 6 dias se fosse necessário usar uma rota de fuga em direção a Fazenda que estava mais próxima de nós. Há 3 quilômetros de distância, em linha reta, varando mato entre uma sequência de vales entre as montanhas.

 

"Mas o bom filho só carrega aquilo que o bom Deus sabe que suportarás."

 

Começamos a andar por volta das 11h, varando mato logo de cara, pra depois voltar de vez a sermos parte do rio. Eu estava muito debilitado (o Rafa também), fraco por estar sem uma alimentação decente, tudo que tinha sido ingerido no dia anterior já tinha virado adubo, nada nutria nosso corpo, a fraqueza era notável e a lentidão inevitável. O grupo teria que ser paciente, pois, aquele seria nosso ritmo até os últimos minutos da travessia.

 

Foi bom ver que não haviam mais grandes desníveis acumulados para vencer. Tudo que vinha pela frente era encarado com saltos, desescaladas breves e flutuação no fluxo do rio. Foi isso que me ajudou, e muito. As vezes apareciam alguns paredões espremendo/estreitando o rio formando gargantas perigosas para pular às cegas já que o borbulhar das águas encobria a profundidade e visibilidade. Algumas nem preocupavam tanto. E aí onde mora o perigo. Teve uma cachoeira em específico que fazia uma curva forte pra esquerda (um "L" na verdade), que não era tão alta, mas imprimia muita força em seu enorme poço formando uma correnteza contra sua parede frontal, que consequentemente formou um grande redemoinho no cantão direito. E a única alternativa que achamos para vencer essa cachoeira foi: usar a corda para descer as mochilas na água, pular no olho do redemoinho e sair dali à nado. Meio sem sentido, mas era o que estava dando resultados. A não ser para Divanei e EU, que fomos pegos por uma força absurda da correnteza que formava o redemoinho e ficamos presos, sem conseguir sair do lugar. Por mais força a gente fazia, por mais braçadas que a gente dava na água, não saímos do lugar. Era como se ele e eu estivéssemos disputando corrida numa esteira ergométrica. E mesmo com colete salva vidas foi tenso! Mas teve um momento que vimos que nossa luta não seria em vão, nos agarramos em pequenas fendas no paredão, nos impulsionamos e conseguimos sair. Foi necessário jogar a corda para fazer o resgate das mochilas, e para piorar, a corda ficou presa em alguma fenda nas pedras submersas e teve de ser resgatada também. Cortá-la não era uma boa opção! Cada centímetro poderia nos tirar de qualquer sufoco que aparecesse rio abaixo. Em outra situação, após atravessar uma forte correnteza usando corda às beiras de uma cachoeira, Trovo deu o primeiro salto como sempre vinha fazendo, para verificar cono era o poço, foi encurralado por um redemoinho que o prendeu por um tempo que foi o suficiente para deixar todos em alerta e com os coletes em mãos prontos para jogar ao nosso amigo.

 

Outra coisa que nos preocupava eram os barulhos de trovão que vinham se aproximando com nuvens carregadas e trazendo chuva forte. Só foi o breve tempo de escurecer o vale, deixar o clima mais sinistro e selvagem do que já estava, e começou a chover. Pronto! Voltamos a ficar em estado de alerta. Pois a chuva veio forte, a partir daquele momento o risco de "cabeça dagua" era eminente, tudo ficaria escorregadio e o equilibro sobre as rochas e pedras estaria fora de nosso controle, a ponto de causar novos acidentes. Loures escorregou numa pedra pela beira do rio e abriu um corte no lábio superior, mas não foi algo tão grave. Pode ser estancado com adesivo de silicone. Do mesmo que ia no meu pé.

 

Como eu estava sempre por último, toda vez, antes de entrarmos em algum poço ou garganta, eu olhava para trás por alguns segundos observando se haviam alguma alteração repentina no nível do rio. O medo era de sermos surpreendidos por uma tromba d'água, como aconteceu na tentativa de atravessarmos o rio Itariru, um ano antes, e não ter tempo hábil para escapar. Mas a mãe natureza teve piedade de nossas almas. Não iria nos colocar em tamanho perigo, sendo que já havia nos castigado em excesso no dia anterior. Seguimos atravessando poções com mais de 50 metros de extensão, debaixo de chuva forte, dentro de um cenário incrivelmente belo e intimidador. Da mata vinha um silêncio angelical, no corte do rio uma névoa pairava baixa sobre vale, e nossa tropa avançando devagar, boiando pelo sobre a água proporcionou um espetáculo a parte, que ficará guardado em nossas memórias.

 

Tanta ação já estava me levando a exaustão. Os braços e pernas já estavam começando a "pifar" dando sinais de fadiga muscular. Como eu, Rafa e Trovo não possuíamos uma mochila estanque, cada, tivemos que nos dar o lixo do sofrimento em erguer o peso da mochila encharcada toda vez que saia de algum poço (escorria uma cachoeira de cada mochila), e isso era uma tarefa cansativa. Houve um momento em que tive cãibras em ambos os membros bem na hora em que estava no meio de um poção, me esforçando para vencer a água sem correnteza. Ainda bem que o Divanei vinha logo em seguida, pois precisei de ajuda! A mochila presa nas costas estava pressionando meu rosto contra a água, eu não conseguia me virar por conta das cãibras. Estava engolindo água e quase me afogando usando colete. Pode isso, produção? rsrs

 

Quanto mais a gente avançava, mais pessimista eu ficava em relação ao próprio desempenho. A rapidez do grupo era notória, e a infinidade de poções que apareciam estavam me ajudando e ao mesmo tempo acabando comigo! Eu estava muito fraco/debilitado, cansado física e psicologicamente. Pensando e me perguntando se eu realmente iria aguentar concluir a travessia. Estava difícil! Bateu um certo alívio com o cessar da chuva, e todos os poços voltaram a transparência de antes, permitindo a visibilidade total do fundo do rio. Quando ele se tornou pedregoso e largo recebeu um afluente de grandes proporções vindo da esquerda e um lago imenso com água à baixo fluxo. Atravessando esse lago à nado, algum dos nossos avistou na margem esquerda algum sinal de que havia passado alguém por lá (pescadores). Fomos averiguar, e acabamos por ter um oásis para o próximo pernoite. Passava pouco das 16h, mas não teve discussões quanto o local. Era um terreno extremamente plano, com árvores de todas as qualidades para todos amarem suas redes, e à beira do rio. Seria perfeito se não fosse pela quantidade de pernilongos que vieram de se alimentar de sangue novo. Oh praga.

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27 de Fevereiro, de 2017 - segunda feira pela manhã.

 

Não recordo do horário que levantamos. Mas me lembro muito bem de estarem todos mais tranquilos por terem passado uma noite menos pavorosa que a anterior. Os únicos incômodos mesmo foram os pernilongos, o calor excessivo que fez durante a noite, e o Rafael tenso pesadelos durante a madrugada, gritando: sai, sai. rsrs

 

Não demoramos muito, e logo nos jogamos dentro d'água para continuar a árdua tarefa de vencer aquele rio. A "Boa notícia" era saber que não iriam aparecer mais cachoeira pela frente, e que o terreno seria mais plano. É a má notícia era derivada da boa. Ao mesmo tempo que o terreno iria se estender plano, ele seria longo, mas muito longo mesmo, até o de Itariri, onde estava planejado o término da travessia, há mais de 25 km de onde estávamos. Outro fator não tão agradável, era que o rio seria, a partir dali, largo, entre fundo e raso, e pedregoso demaaais. O que tornaria tudo muito repetitivo. Maçante.

 

Com o pé não tão cheio de dor quanto no dia anterior pude acompanhar mais de perto a rapaziada, que também se demonstrava mais sadia. Integra. Logo nas primeiras curvas encontramos um rancho de pescadores, fresquinho, recém abandonado em bom estado. Em meio aos apetrechos que deixaram para trás encontrei um cupom eletrônico de uma farmácia, onde os indivíduos compraram algum remédio, e umas guloseimas. O cupom também denunciava de onde e em qual data vieram, Praia Grande, 13/02/2017. Dez dias antes de nós. Como no acampamento em que pernoitamos, procuramos vestígios de trilhas que pudessem nos levar à algum lugar mas não encontramos nada. Tínhamos que ficar em alerta, pois já era hora de encontrarmos algum caminho/ trilha para deixar aquele para trás.

 

Continuamos nossa difícil tarefa de andar em solo pedregoso e atravessar a nado grandes poções de águas cristalinas refletindo o verde verde da mata e refrescava nossas cacholas que ardiam sob o sol escaldante daquela segunda feira. Óh céus, que vida. rs

 

Depois de horas nadando e andando, passamos pela Ilha São Matheus, em pleno sol do meio dia, numa curva acentuada de rio, dentro de um poço gigante, ouça uma voz diferente invadir nossa conversa. To delirando? Alucinação? Talvez!?? É quando paramos para ouvir melhor, vieram latidos de dentro da mata. Pronto! Estávamos certo de que haviam caçadores por perto. Iniciamos uma balbúrdia para que viesse ver o que acontecia em meio a tanto silêncio destinada à caça. Apareceram três cachorros e dois caras, de um total de 4 jovens, mal encarados, a riscos com nossa presença e despejando aquela atenção de quem não quer ser incomodado. Isso ficou claro quando começamos a fazer perguntas de como sair dali, por qual caminho seria melhor, o mais curto e o mais fácil, etc e tal. Mas as respostas só vinham acompanhadas de mentiras, pois o que eles queriam mesmo era nos ver longe dali o mais rápido possível. A única "meia verdade" que responderam foi que ali partiria uma trilha, de aproximadamente três de caminhada, e que nos levaria à Peruíbe. Mas que se arriscássemos ir por ela a gente iria se perder por que a trilha era muito fechada. O restante do que ele disse era tudo balela. Tínhamos a noção (e o mapa) de onde estávamos e o quanto iria demorar se continuássemos pelo rio.

 

Saímos da água pela margem esquerda, oposta à deles, para continuar um tanto pelo mato, e acabamos achando o acampamento deles. Tudo bem ajeitado, com comida no fogo a lenha e tudo mais. Averiguamos o entorno, encontramos uma trilha, e sem pensar duas vezes, nos enfiamos nela à todo vapor. Andando rápido pela ânsia de acabar aquela jornada, e pelo receio de não saber qual tipo de maldade e armamentos aqueles caras possuíam. A trilha começou bem aberta sem muitos obstáculos, apenas cruzava alguns riachos e tinha leve elevação. Hora começava a fechar de vez, e tínhamos que nos dividir e farejar o rastro dela. A dificuldade veio quando a trilha se lançou morro acima para vencer uma serra e nos jogar no fundo de outro vale. Meeeeu Deus, que subida cruel. Pior que a do Capim Amarelo na Travessia da Serra Fina. Nessa hora o sofrimento foi coletivo! Do mais preparado ao mais fudido o sofrimento era o mesmo. A língua se arrastava no chão, o fôlego não vinha aos pulmões, andávamos 5 metros e parávamos 10 minutos para descanso. O Divanei, que já entrou nessa expedição com o joelho lesionado de aventuras anteriores, sofreu com uma pitada a mais de "SIFUDEX." Ele que não costuma, nem gosta, de ficar entre os últimos do grupo, liderou a lanterninha por toda a subida e sua continuação.

 

Três horas vocês chegam em Peruíbe- disse o caçador. O cú dele. Levamos quase uma hora sonora vencer essa primeira piramba morro acima, e ainda estávamos no começo da caminhada. Quando a trilha começou a descer, desceu bastante, mas não foi algo tão absurdo quanto na subida. Passamos por ranchos bem estruturados, abandonados há tempos, deteriorados e dominados pela mata que cresceu ao redor, cruzamos novos riachos, subimos e descemos novos morros e por mais que se possa imaginar, encontramos mais um rancho, em bom estado, habitado por dois caçadores figuraças, Ricardo/Índio e Barba/Hippão, que deram a maior atenção, mas também nos queriam distantes.

 

Contando brevemente o que passamos pelos dias anteriores, o Barba perguntou:

 

- posso chamar vocês de malucos? Porque é isso que vocês são!! - e soltou uma gargalhada hilária pra nos confortar.

 

Não contente em explicar o caminho, Ricardo/Índio fez questão de nos levar à picada de acesso ao último sobe e desce antes da planície litorânea de Peruíbe. A gente já tinha passado de frente à picada, mas, como estava bem fechada, passamos sem perceber. E se não fosse por eles, nunca iríamos encontrar aquele caminho.

 

Ainda tínhamos 2h para caminhar antes do anoitecer, e como o Índio tinha dito que em 1h30 a gente conseguiria chegar no final da trilha. Nooosssa, o olho do Trovo brilhou, e seu entusiasmo se elevou à 1000. E crente que nosso sofrimento terminaria naquele mesmo dia, tomou a frente do grupo e ditou um ritmo forte para tentar fazer isso acontecer. Mas não deu. Perdemos a trilha por diversas vezes por conta que árvores caídas que cobriam o caminho, ou porque a trilha realmente sumia do nada. A situação já voltava a ficar embaraçosa, enroscamos em um trecho, que, mesmo nos separando para procurando a continuação da trilha, não havia havia progresso. Era uma área com muitas árvores caídas, e em baixo delas um ninho de cobra às escondidas. Uma delas foi em direção ao Natan, que, de costas, não viu o suposto bote que levaria. Só foi o tempo de avisá-lo: cobra, Natan. E a danada passou direto depois que ele pulou e saiu rolando pela esquerda. Logo depois, em cima de uma rocha, Loures também levou sofreu um bote de cobra na perna (estava de perneira), de um salto mortal sobre a serpente e saiu rolando piramba abaixo. Com isso, bateu a cabeça e abriu um corte acima da sobrancelha. Ainda bem que não foi nada grave.

 

Á noite já havia caído, estávamos numa encosta feroz, onde a inclinação era dominante, sem ponto de água por perto, e nos encrencando cada vez mais. E mesmo com a gana de prosseguir pulsando no peito, o coletivo decidiu por sensatez armar acampamento na única área plana que achamos onde só havia inclinação. Era notável que não iríamos concluir tudo naquela noite. Aconchegamos nossos medos em uma fogueira feito pelo Prince, a qual ajudei a abastecer com madeira morta que alguns de nós coletaram pelo entorno. Os últimos acontecimentos tinham elevado a adrenalina novamente, e a hipótese de ter que passar toda a noite sem comer, ou se hidratar, por não ter água por perto já trazia na mente a visão de mais uma noite de sofrimento. Mas dupla dinâmica: Louco & Teimosinho (Loures e Trovo), mostraram seus peitos de aço e saíram em busca da água sagrada. Às 20h00 se equiparam com perneiras, lanternas, apitos e saco estanque e partiram varando mato noite à fora, para retornar perto das 23h00 munidos de água suficiente para saciar a sede de todos e preparar o rango. A medida desses caras foi uma medida salvadora.

 

No intervalo dessa busca pelo líquido precioso eu tomei minha última dose de "SIFODEX" ao meter o calcanhar na ponta da unha do dedão do pé que estava queimado. A unha levantou e quase saiu por completa do dedão. Que dor, que dooor...!! Mas dessa vez fui mais macho e não soltei nenhum grito. Só gemidos baixinhos que poucos perceberam.

 

Só depois disso tudo pudemos iniciar aquilo que seria nossa última noite de descanso em meio ao mundo paralelo que é a Serra do Mar.

 

Serra do mar, 28 de Fevereiro, de 2017 - manhã de terça-feira

 

Sem muito a ser feito, desmontamos nosso alojamento, comemos o que restava de alimento entre as mochilas, e tocamos pra baixo, seguindo a trilha que nos fugiu no crepúsculo anterior. Mas não passou muito, ela voltou a fugir e sumiu de vez, nos obrigando a varar mato até cairmos numa vala de afluente seco. Perdendo bastante altitude chegamos a encontrar água descendo em abundância, e seguimos pelo mesmo caminho. Quando paramos para descansar um pouco, lavar o rosto e dar um gole na água, um bela de uma jararaca veio dar o ar de sua graça ao grupo. O fez a gente sair dali o mais rápido possível. Não demorou muito, e no mesmo caminho que a água fazia, vimos uma mangueira captando água do rio, e isso provava que alguma moradia teria de existir no final dessa canalização. Decidimos seguir o "ladrão." Creio que em menos de 100 metros a Mata se abriu escancarando um céu lindamente azul aos nossos olhos e pondo fim a uma caminhada árdua com mais de 10 km desde que abandonamos o rio. O terreno era terra firme, um sítio com casas abandonadas, um lago nos fundos e um trator "Transformers" sendo desmanchado pela ferrugem. Ali foi o ponto final da travessia, onde, sentados no chão, comemos goiabas pegas direto do pé e chupamos canas retiradas pelas próprias mãos.

 

Dalí partimos em um caminho de mato alto, desembocamos na Estrada do Ouro, que leva à Cachoeira de mesmo nome e seguimos no sentido contrário, rumo ao ponto de ônibus, que fica sobre uma ponte onde corre um rio por baixo e que serviu de parque de diversão para a galera. Tinha uma família fazendo churrasco á beira rio, da qual o líder teve a péssima ideia de oferecer carne aos trogloditas que estavam na floresta há quatro dias. Coitado. Ele soltou dois bifes enormes espetados em um garfo de churrasco, e a "briga" foi geral. Pior do que cachorro que rosna e mostra os dentes quando outro da própria raça se aproxima do osso, a galera nem se importava se a carne estava quente. Queimavam os dedos e os beiços, enfiavam as pontas do garfo no nariz sem perceber, mas não largavam a carne. Foi muito engraçado ver aquela cena. Principalmente quando gritei:

 

- olha o ônibus. - era mentira kkk

 

A galera se distraiu, e eu pude dar umas dentadas bem vigorosas naquele bife suculento. Hahahaha

 

Quando o ônibus realmente chegou, embarcamos e fomos deixando para trás a maior aventura que cada um daquele grupo já viveu em suas vidas. A maior, a mais difícil e a mais assustadora travessia expedicionária pela Serra do Mar Paulista. Foi uma surra violenta que levamos da mãe natureza, mas saímos de lá com a alegria residindo em nossas almas, sem ter data e nem hora para partir para o esquecimento.

 

O latão motorizado gastou mais de uma hora para nos tirar daquele bairro rural, e nos colocar de volta ao contato com seres "humanos normais."

 

Chegamos ao centro de Peruíbe, almoçamos em um restaurante com PF à preços populares e pegamos um ônibus rodoviário para São Paulo, onde nos despedimos com um alívio na alma por terminar tudo bem, a pesar dos ferimentos no corpo e na mente, ESTÁVAMOS INTEIROS.

 

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Agradeço: Daniel Trovo, Divanei Goes, Eduardo Loures, Marcos Prince, Silvester Natan e Rafael S Lima por estarem junto nessa odisseia, e por terem todo o espírito de união e companheirismo enquanto estávamos dentro daquele Vale. Agradeço também todos os amigos que se propuseram a tentar atravessar aquele rio em outrora. Deus abençoe à todos!

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