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Reflexões sobre uma viagem a Cuba


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Desde os tempos de estudante primário, Cuba e sua Revolução sempre me despertaram a atenção, curiosidade e admiração pela façanha dos barbudos da Sierra Maestra liderados por Fidel, Che Guevara e Cienfuegos que, armas em punho, depuseram ao protegido estadunidense Fulgêncio Batista e instalaram o até hoje único regime socialista das Américas, que conseguiu resistir a 45 anos de bloqueio econômico e agressões de seu poderoso vizinho do Norte e ao desmantelamento do antigo Bloco Socialista liderado pela extinta URSS. A vontade de visitar Cuba e conferir pessoalmente a situação do país e seu povo nunca me faltou, mas confesso que ela sempre esteve acompanhada de um certo receio, medo de encontrar uma realidade que eu no fundo não quisesse conhecer e me decepcionar e frustrar minha admiração e minhas convicções de esquerda. Felizmente, não foi o que aconteceu.

Cuba é um país pobre. Correto. Trata-se de uma estreita ilha, menor que o Ceará e com mais que o dobro de sua população, sem nenhum grande recurso natural estratégico e que necessita importar muitos dos bens que consome a preços mais elevados que os cobrados a outros países graças ao bloqueio estadunidense que encarece os fretes cobrados, além de quase todo o petróleo de que depende. Mas ainda assim, conseguiu atingir níveis de educação e saúde de fazer inveja a muitos países desenvolvidos, motivo de orgulho para todos os seus cidadãos, mesmo aqueles de quem ouvi críticas mais ácidas à natureza fechada de seu regime político ou à dureza da vida no país, em que de fato não há espaço para muitos luxos, alguns itens de necessidade básica, como higiene, são racionados e o transporte público é bastante precário. Mas os tempos de penúria do “regime especial” que se seguiu à queda da URSS e ao fim da ajuda econômica que esse país prestava à ilha parecem mesmo ter chegado ao fim. Graças aos recursos que têm ingressado com o turismo e à mais recente ajuda econômica vinda da Venezuela e sua Alternativa Bolivariana para as Américas (ALBA), a recuperação econômica cubana nos últimos anos tem progredido e seus sinais são sensíveis na melhora geral das condições de vida no país e visíveis no imenso número de prédios em processo de restauração no belo centro histórico de Havana. Muito embora, é verdade, esse mesmo turismo tenha trazido um aumento da desigualdade relativa, antes muito menor ou quase inexistente, entre aqueles que via turismo têm acesso mais fácil a divisas e com elas a bens que aos outros cubanos seguem quase inacessíveis.

Porém, o ponto que muitos dos críticos mais raivosos da ilha parecem deixar de lado, e que a mim me parece central, é que tudo precisa ser entendido em seu contexto, e simplesmente não é possível comparar Cuba com a Alemanha, a Suécia ou a Inglaterra. A comparação deve ser feita com países de história e passado semelhantes, e comparada com El Salvador, Guatemala, Bolívia ou Peru, por exemplo, a vantagem cubana é gritante. Ou mesmo se comparada a países mais ricos da América Latina, como Brasil, México ou Argentina. Não me restou a menor dúvida de que sendo filho da classe média brasileira como sou, levo uma vida muito mais confortável que os cubanos, mas qualquer brasileiro bem informado sabe que somos minoria no país. E comparando-se como vivem os favelados ou habitantes dos grotões rurais com os cubanos, simplesmente não há comparação possível. Por mais austera e regrada que seja a vida em Cuba, vive-se com dignidade, o que não se pode dizer da maioria da população latino-americana e se é certo que algumas coisas poderiam e deveriam ser melhoradas em Cuba me parece no mínimo duvidosa a idéia de que essa melhoria possa ser atendida privatizando os serviços públicos cubanos como se fez (e não deu certo) no resto da América Latina ou legalizando partidos semelhantes aos PFLs e PMDBs da vida e convocando eleições gerais. Certamente, Cuba não é nenhum paraíso. Como bem coloca Ignácio Ramonet em debate publicado na revista estadunidense Foreign Policy mais recente, “paraísos existem apenas em anúncios turísticos. Mas para as dezenas de milhões de pessoas que vivem na selva de concreto do mundo contemporâneo – sem abrigo, trabalho, comida, atendimento médico, educação, eletricidade ou água potável – Cuba pode ser, apesar de todas suas imperfeições, um paraíso desejável no horizonte”. A Revolução Cubana, com todos os seus erros e acertos, avanços e defeitos, continua motivo de orgulho e fonte de inspiração para aqueles que lutam por um mundo mais justo, cada vez mais urgente e necessário.

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minha restrição a cuba continua sendo a mesma: a questão dos direitos humanos e da liberdade de imprensa. restrição que estendo a qualquer outro país onde isto ocorra, seja venezuela, e.u.a. (pra mim, os campeões mundiais de desrespeito aos DH), rússia, china, brasil (sim, nosso paisinho é uma merda), ou qualquer outro lugar.

esses dois fatores estragam qualquer cultura. como uma mosca morta ou uma barata morta dentro de um bolo maravilhoso. por melhor que seja o bolo, não adianta, contaminou.

como ressaltou há algum tempo atrás um comunista histórico, o josé saramago: "o que importa é progresso moral, pois o progresso material é uma mera questão de distribuição de bens".

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  • Colaboradores

Acho que é preciso caracterizar o que são direitos humanos de uma maneira mais ampla, pois na minha opinião os mesmos incluem direito a moradia, direito a comer, direito à educação, a saúde, a segurança, dentre vários outros. Analisados assim, de maneira expandida, inexiste hoje um país sequer que respeite 100% os direitos humanos. Alguns respeitam uns mais que outros, outros respeitam quase nenhum ou muito poucos de uma minoria de habitantes. Assim, ainda acho que Cuba, apesar das conhecidas restrições à liberdade de organização política fora dos marcos do partido único e da não liberdade de imprensa respeita melhor os direitos humanos que muitos outros países. Até porque, como falei no texto, acho q as coisas devem ser entendidas dentro de seu contexto. A existência apenas da imprensa oficial (que não obstante seja controlada faz um jornalismo de melhor qualidade que o da nossa Rede Globo, por exemplo) se não pode ser justificada moralmente em um patamar mais amplo, explica-se facilmente pela situação que perdura até os dias de hoje de possuir Cuba um vizinho bastante próximo, agressivo, e sempre disposto a financiar quem se dispuser a acabar com a Revolução Cubana seja por que meios for: explodindo hotéis e aviões, disseminando virus para acabar com a lavoura, sabotagens várias, tentativas de assassinato dos líderes políticos etc. Não há a menor dúvida de que se não houvesse o controle que há por parte do governo, proliferariam centenas de jornais e emissoras financiados pelos EUA com a única missão de derrubar o regime, mesmo que utilizando às vezes de notícias falsas e mentirosas. Como disse, não torna correto, mas torna compreensível e houvesse sido a história diferente, talvez as medidas adotadas também tivessem sido outras, melhores.

 

Quanto à frase do Saramago, acho que está ao menos parcialmente contemplada no alto nível de acesso a cultura de que gozam os cubanos.

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  • Membros de Honra

clayton, direitos sociais são os chamados DH de terceira geração. o direito à vida se sobrepõe a eles, pois estes direitos são complementos ao direito à vida. concordo que país nenhum respeita 100% dos DH, e ressalto que considero os e.u.a. os piores de todos nesse quesito, vide o que aprontam nas prisões de gunatánamo.

mas pena de morte (o famoso paredón) e encerrar homossexuais nos famosos campos de trabalho "voluntário" é algo que não combina com a cultura do povo cubano.

cuba sofreria bem menos com a liberdade de imprensa do que a venezuela. não falo em permitir empresas estrageiras (seriam as americanas!) possuírem meios de comunicação, mas em dar vazão a vozes da própria ilha, acabando com a censura, ou diminuindo-a drasticamente. ninguém lá pode, por exemplo questionar a presença de fidel no governo, ou pleitear eleições.

as oposições internas já foram, há muito, esmagadas. mas nada justifica alguém ficar 40 anos no poder.

não há diferenças básicas entre viver debaixo de um sistema de estado único ou debaixo de uma ditadura de grandes corporações. cuba já tem o mérito de ter explodido os bancos, agora falta explodir o estado.

agora, é fato que há uma cleptocracia, é fato que grande parte da população tem dificuldades alimentares - e os cleptocratas não. se vc passeou bem em cuba, deve ter notado que em muitos locais cria-se porquinhos, leitões, inclusive em apartamentos, pois isso é um modo de se comer carne, enquanto uma camada de burocratas não passa por isso.

cuba não tem mais desculpa pra usar o paredon, e ainda o usa. ainda tem presos políticos que não participaram de sabotagens ou coisas do tipo, apenas cometeram o pecado mortal de escrever algo que "não se podia".

 

qual será a saída pra cuba? tornar-se uma china, ou seja, uma simples ditadura, ou virar satélite americano? o fogo ou a frigideira?

 

cuba poderia pensar numa terceira saída, que seria tornar-se uma democracia. democracia combina com justiça social. ainda mais quando se tem um povo com alta escolaridade.

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  • Colaboradores

Eu concordo contigo em quase tudo. Citaria até algumas outras críticas que vc não fez, como a precariedade do transporte público cubano, por exemplo. Centro as minhas descordâncias, no entanto, em alguns pontos. Por exemplo, no "paredón". Cuba tem pena de morte, isso é um fato e eu discordo, sou contra pena de morte em qualquer lugar. Mas paredón, execução sumária, não existe, há leis e um processo legal antes de qq execução, que são muito raras até. Quanto à imprensa, o problema é que mesmo que fosse proibido a instalação de empresas estrangeiras (estadunidenses, no caso), com o volume de dinheiro que é dado ao lobby cubano de Miami, certamente apareceriam dezenas de veículos midiáticos cubanos no nome e na letra da lei mas com capital 100% ianque. Concordo, no entanto, que é algo que deva ser melhorado, mas sinceramente não vejo no curto prazo, enquanto a política dos EUA continuar tão agressiva, de isso ser implementado sem comprometer algumas das conquistas da revolução. Na parte da cleptocracia, certamente com tanta burocracia (que realmente há bastante), o terreno torna-se mais propício a corrupção e os funcionários de altos cargos têm um padrão de vida melhor que uma boa parte da população. Mas corrupção a parte, que isso infelizmente pode-se combater mas nunca atingir 100% de ausência da mesma, em Cuba os salários não são iguais para todas as atividades. Isso eu até nem sabia, fiquei sabendo lá, então muito dessa diferença entre os altos funcionários e a parte mais pobre da população explica-se aí também. Se é justo ou não, é outra história, mas as diferenças entre essas duas parcelas da população é muito menor em Cuba que em quase toda a América Latina entre os mais pobres e os mais ricos. Mas mesmo assim, acho q um dos motivos para o regime ainda deter índices de aprovação relativamente altos e ter resistido tanto tempo com condições tão adversas é que em Cuba não se chegou a uma diferenciação tão grande entre a elite do partido e a população como era, por exemplo, na URSS e Leste Europeu, ou mesmo na Nicarágua Sandinista. Mesmo superior ao nível de vida da massa cubana, o nível de vida entre os dirigentes é ainda bastante frugal em comparação com qq deputado nosso. E aí entramos na parte da democracia: dos anos 1990 pra cá, tem aumentado gradativamente a democracia direta e número de cargos eleitos diretamente, como para o Parlamento. Ainda não há eleições para presidente, é verdade, e não pode legalizar-se partidos outros que não o Comunista, mas podem se apresentar como candidatos ao parlamento pessoas não filiadas a ele. E acho que gradativamente, essa prática democrática tende a expandir-se. Quanto às dificuldades alimentares e aos cultivos familiares, a cesta dada pelo governo não dá para o mês todo de fato. Mas essa situação tem melhorado com a recuperação econômica na ilha e acho que com as mudanças que vêm ocorrendo na Venezuela, Bolívia e Equador e à maior integração em outras bases que não a meramente comercial e monetária entre esses países, a situação é ir melhorando também nos 4 (Cuba, V, B e Eq). E apesar de ter se originado por uma situação real negativa de escassez, o fato de q mais e mais pessoas tenham hortas comunitárias ou criem pequenos animais é, no final das contas, positivo e até deveria ser política pública auxiliar no Brasil tb...

 

O que acho é que levando em consideração o que Cuba era e onde conseguiu chegar, o contexto em que tudo isso se deu, e a situação que temos nos países vizinhos, o balanço geral da Revolução de 59 ainda é positivo, há que se buscar melhorar essas deficiências, mas pisando num campo minado, com cuidado para no processo não acabar jogando fora as conquistas, e eu preferiria muito mais um Fidel vitalício que um Alckmin eleito "democraticamente", por exemplo.

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  • Membros de Honra

Clayton,

 

parabéns pelo relato do que vc viu em Cuba. geralmente os relatos são da viagem por lá, mas vc foi além e escreveu uma análise social do país

 

e é bom ouvir de cuba de aguém que foi lá, dá mais credibilidade ao que a pessoa fala sobre o país (que desperta tanta curiosidade e divergencia)

 

dps posta fotos da viagem

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  • 11 meses depois...
  • Membros

Clayton, gostei muito de seu relato, combina com minha maneira de enxergar o mundo e suas mazelas. Irei para Cuba no dia 21 de março (vou ficar uma semana por lá). Gostaria de ter uma ajuda sua a respeito da viagem. Estadia por exemplo. Você ficou em casa de família ? Alguma referência boa? Minha intenção nesta viagem é conhecer os aspectos sociais da ilha e não simplesmente o mar do Caribe. Por isso tenho inteção de ficar em casa de família. Além disso se você tiver alguma dica de locais para visitar, será muito bem vinda.

Parabéns pelo relato e pela visão.

 

At

 

 

Alexandre

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