Ir para conteúdo

Posts Recomendados

  • Membros de Honra

A GRANDE TRAVESSIA DE ITATIAIA

 

No vale em que me encontro agora, vejo sobre minha cabeça um paredão de quase 600 metros. Estou a quase 1800 metros de altitude, meus pés estão destruídos, também pudera, já faz pelo menos uns seis meses que não caminho em lugar nenhum, o trabalho e outros afazeres tomaram quase todo o meu tempo este ano. Aqui é o vale do Rio Aiuruoca e para chegar até aqui tive que caminhar quase 10 horas, mas valeu muito a pena. Este lugar é belíssimo, a cor da água é impressionante, poucas vezes vi algo igual. Enquanto minha janta cozinha, aproveito para montar minha barraca, tirar minhas botas e colocar meus pés na gélida água deste rio. Apesar de sozinho, me sinto imensamente feliz de estar aqui, já não agüentava mais a pressão do trabalho, da casa, e de tudo mais que aos pouco vai minando a energia da gente. E não se trata de recarregar as baterias, é exatamente o contrário, estou aqui para me livrar delas. Sem celular, computador e qualquer outro aparelho que possa dar “pau”. Carrego comigo apenas minha máquina fotográfica digital e mais nada. Estando aqui consigo sentir como a vida simples é maravilhosa. Ouço apenas o barulho do rio, dos pássaros e dos pequenos animais que rondam minha barraca. Ao meu lado tem uma cabana de madeira, uma verdadeira tapera, abandonada sabe se lá quando. Este local hoje pertence ao Parque Nacional de Itatiaia, mas outrora era habitado por caboclos corajosos que não se importavam em levar uma vida extremamente simples e sem se contaminar com a mediocridade da nossa civilização .Apesar de estarmos no horário de verão a noite cai rápido por estas bandas devido a quantidade de montanhas.Por isso mesmo antes das 7 da noite já me recolho, afinal de contas foi um dia intenso, e amanhã logo de cara tenho 600 metros de desnível para conquistar até chegar a portaria superior do Itatiaia,já no planalto desta fantástica cadeia de montanhas . Mas é claro, minha história não começa aqui, vamos voltar no tempo um pouco, mais precisamente na tarde de ontem, que foi quando eu sai de casa para chegar até aqui.

 

É muito engraçado ver a cara dos meus vizinhos ao me ver com minha enorme mochila nas costas e trajando roupas largas, que eles julgam ser de vagabundo. Eles sempre me vêem com cara meio de mauricinho, bom pai, bom filho, bom vizinho, mas acham estranho alguém largar sua casa, jogar uma mochilona nas costas e ir sozinho para o mato e para as montanhas. Mas não os culpo, minha própria família às vezes acha que as minhas faculdades mentais estão comprometidas. Dou muita risada disso tudo. Já me acostumei a dar uma banana para o pensamento hipócrita da sociedade que me cerca. Quase todos me condenam, mas sei que a maioria deles vive suas vidinha infelizes, se apegando a coisas que aos pouco os destrói e rouba sua liberdade e sei que a maioria nunca terá coragem de se livrar de velhos pré-conceitos e viverão presos para sempre num mundinho de aparências , tentando manter seus estátus sociais, mas respeito o modo de pensar de cada um, apenas tenho um pouco de pena.

 

Subo no ônibus e logo enfrento o olhar dos passageiros. Encontro um ex- amigo de escola que havia passado uma temporada hospedado em uma penitenciaria. Ele estava trajando um terno preto e em suas mãos levava uma bíblia. Quando digo a ele o que pretendo fazer, ele me diz que sou louco e que tenho muita coragem. Coragem tem ele, vender drogas e praticar assalto a mão armada não é pra qualquer um.Desembarco na rodoviária de Campinas e logo em seguida pego o ônibus para S. José dos Campos . Em duas horas e meia chego ao meu destino, de onde embarco quase imediatamente para a cidade de Resende, já no estado do Rio de Janeiro. Durmo durante toda a viagem e quase sem perceber ao abrir os olhos já estou no lugar pretendido. São duas da manhã e o ônibus que deveria me levar para o vilarejo de Visconde de Mauá só sairá às cinco e meia. Aproveito para tentar dormir um pouco ali mesmo na rodoviária, mas é claro, os seguranças não permitem. As quinze para as seis encosta o coletivo. Ele não vai só até Mauá e sim até Maromba, outro vilarejo 10 km a frente, justamente meu destino.

 

O ônibus toma o caminho no sentido oeste e por 50 km serpenteia este braço da Serra da Mantiqueira. São tantas curvas que chego quase a vomitar, mas o caminho é lindo e o sol nascendo por trás das montanhas dá um brilho todo especial a viagem. Passamos por Visconde de Mauá. Apenas uma rua de terra e mais nada. Ao lado corre um riacho de águas cristalinas que dá ao lugar um charme todo especial. Depois vem Maringá e logo em seguida a estrada acaba no bucólico vilarejo de Maromba. Lugarejo muito interessante, meio fim de mundo, simplesmente adorável. Vou até uma padaria para tomar café e me informar sobre a travessia conhecida com Serra Negra. A padaria é bem estilizada, têm fotos do Che Guevara por todos os lados, símbolos de sindicatos e de órgãos de defesa humanitária. Pergunto ao dono sobre a trilha e ele me diz que ali é um parque nacional e que ninguém pode passar sem autorização e aquelas balelas todas. Vejo logo que se trata de um hipócrita, mando logo este porco a merda e vou me informar em outro lugar.Encontro um “bicho grilo’ muito gente boa que me da logo todas as informações que preciso. O cara tem um pensamento revolucionário sobre a civilização, um pouco maluco admito, mas consegui aprender muita coisa com ele.

 

A minha intenção é partir de Maromba, cruzar por dentro do Parque Nacional de Itatiaia por uma montanha conhecida por Serra Negra, descer até o vale do Rio Aiuruoca e depois subir até a parte alta do parque, onde fica o Pico das Agulhas Negras e de lá descer até a sede, já na cidade de Itatiaia. Este trajeto terá que ser feito em três dias, que é o tempo que eu tenho de folga do trabalho.

 

Atravesso o rio Maromba e entro de cara logo no Estado de Minas Gerais. Aliás, lindo rio, se não fosse tão cedo e a água não estivesse tão fria eu arriscaria tomar logo um banho. Tomo logo a estradinha depois da ponte e em 5 minutos pulo a porteira de um sítio. Procuro pela trilha depois de uma ponte de madeira, mas nada encontro. Não demora muito percebo logo o erro,entrei no lado errado da estrada.Volto, pego a estradinha a direita, mas não consigo perceber trilha alguma.Estou seguindo um mapa muito antigo desta trilha e as coisas mudaram muito por aqui.Cercas foram colocadas, porteiras mudaram de lugar. Fiquei por quase uma hora rodando atrás da trilha e finalmente a encontrei subindo a encosta quase no rumo contrário ao que eu havia chegado até aqui. É uma subida enorme que passa por dentro de algumas samambaias e curvando-se para a direita, passa por uma bica onde aproveito para encher o meu cantil e logo ela desemboca no alto da serra dando visão para toda a extensão da Mantiqueira. Consegue se contar dezenas de cachoeiras despencando do alto das montanhas, uma visão realmente de encher os olhos.

 

Sigo meu caminho a passos largos, parando de vez enquanto para tomar fôlego e arrefecer a temperatura interna com um gole de água. Esta trilha é bem larga e muito usada pelo povo da região. Na verdade pode se dizer que é uma trilha histórica, usado pelos agricultores para abastecer com alimentos os vilarejos que acabei de passar. Eles usam as mulas para fazer este transporte. É de se admirar que em pleno século 21 este tipo de comércio ainda sobreviva, ainda mais por estarmos em um local que fica entre as duas maiores cidades do Brasil, Rio e São Paulo. Eu esperava encontrar com os tropeiros, mas infelizmente não vi viva alma por onde passei nesta serra.

 

O caminho é penoso, só subida. Conforme vamos subindo a serra vai ficando mais espetacular. Não é possível avistar daqui as Agulhas Negras, escondida e que só será vista no segundo dia de caminhada. A trilha em alguns momentos vai se perdendo nos vastos campos de altitude e é preciso tomar cuidado com a direção a tomar, ou então se corre o risco de perder-se nos vales abaixo. Por várias vezes tive que me sentar ,tomar fôlego e estudar o caminho a seguir.Depois de umas cinco horas de caminhada montanha acima,finalmente chego ao topo desta serra.São 2400 metros de altitude ou até menos,não muito alto se compararmos com as montanhas que nos cercam , mas não dá para negar que o desnível vencido até aqui não é para qualquer um.Em mais uma hora chego a borda do grande vale do Aiuruoca .Será uma descida vertiginosa até o rio.Este é o local que eles chamam de subida da misericórdia.Bom,isso para quem faz a trilha no sentido contrário, mas para min é descida,a minha misericórdia já ficou para trás.A descida é terrível,acaba com os joelhos e o tornozelo da gente.A mochila já está pesando uma tonelada.Desço de pressa,mas sempre parando para fotografar a paisagem ,as plantas e flores e é claro, as fantásticas montanhas ao meu redor.Passo por florestas e dezenas de riachos até que a trilha desemboca em um pequeno amontoado de casas.Não sei ao certo ,mas parece que este é o lugar que eles chamam de Fragária.Estou muito cansado e com muita fome, mas como ainda tenho umas duas hora de sol,

decido seguir em frente. Pergunto em um lugar que parece ser uma pousada meio abandonada e logo me informam o caminho a seguir. Pego uma pequena estrada de terra e em 5 minutos quebro a esquerda em um caminho que morre em uma casa. Pergunto pela trilha que pode me levar até o Hotel Alsene, que fica na estrada que da acesso a portaria do parque, uma mulher me dá a dica.Fiquei sabendo no outro dia que esta mulher é a mãe de um dos guarda- parque,Pulo o riozinho logo abaixo da casa e encontro a trilha que procuro,e em meia hora ou menos chego em um riacho que penso ser o Aiuruoca.Paro para descansar um pouco e beliscar alguma coisa, aproveito para tirar a bota e descansar um pouco os pés.Tento tomar um banho,mas a água está extremamente fria e congela até os ossos.

 

Tomo de novo a trilha montanha acima. Na serra começam a surgir várias cachoeiras de dezenas de metros, fico fascinado com tanta beleza. Fico também preocupado com o rumo que esta trilha começa a tomar. Estou entrando em uma zona de completo abandono, pouca gente passa por aqui. A trilha atravessa florestas e mais florestas, cruza por vários rios e vales. Ando, Ando muito e não chego a lugar algum. Será que estou perdido? Penso eu. Em uma curva da trilha tropeço no maior cupinzeiro que já vi na vida. Tinha mais de 3 metros de altura por uns 2 metros de largura, de tão grande chegou a tombar na trilha. Passo por mais cachoeiras gigantes e também por alguns ranchos abandonados e é exatamente em um destes abrigos rústicos que acabo perdendo a trilha. Procurei, procurei e nada encontrei. Agora sim eu estava perdido!! Desci quase todo o vale a direita, mas nada .Subi em uma árvore e consegui localizar o hotel encravado em um selado a uns 700 metros de desnível acima de mim,acertei o meu rumo,voltei até o rancho e localizei a trilha novamente e quando menos espero, chego ao verdadeiro Rio Aiuruoca. Fiquei decepcionado no começo, pois esperava chegar à estrada do parque hoje ainda e vi que estava muito longe. Mas depois que botei meus olhos neste fabuloso rio, não tive a menor dúvida, joguei minha mochila no chão e dei por encerrado meu primeiro dia de caminhada. Tanta beleza merecia ser explorada com calma, eu iria acampar ali mesmo, iria passar a noite reverenciando este espetáculo da natureza.

 

Acordo às seis da manhã. O céu está perfeito, nenhuma nuvem. Dormi muito bem, como poucas vezes dormira em minha vida. Meus pés ainda doem um pouco, mas a vontade de seguir viagem compensa qualquer sofrimento. Enquanto o fogareiro ferve a água do café,aproveito para desmontar a barraca e arrumar minha mochila.Vou até o rio escovar os dentes e lavar o rosto,aproveito também para localizar a continuação da trilha do outro lado,desço um pouco pelo rio para visitar as cachoeiras e os poços .Tomo café,jogo novamente a mochila nas costa e tomo meu rumo.Atravesso o rio com a água quase pela cintura.A água é tão fria que mal consigo chegar do outro lado.O rio Aiuruoca nasce a 2500 metros de altitude,por isso as suas águas são tão geladas.A trilha continua subindo sem piedade.O paredão sobre minha cabeça vai ficando cada vez mais perto.Atrás de mim vão surgindo vales e gargantas profundas e consigo ver outras serras da qual já tive o prazer de caminhar. Duas horas se passam e finalmente alcanço a estradinha de terra que me levará até a portaria do Parque Nacional de Itatiaia. Ao lado do lugar onde acabei saindo está o famoso Hotel Alsene. Na verdade uma rústica construção de montanha que anda meio jogado as traças. Completamente vazio. Ouvi dizer que o prédio foi vendido para a Associação de Atletismo para treinamento dos nossos atletas olímpicos.

A estradinha onde estou na verdade é uma BR a mais alta do Brasil. Estamos a 2400 metros de altitude. Conta a história que ela teria sido construída a mando do então Presidente Getulio Vargas.Se alguma coisa desse errado na revolução constitucionalista de 1932,Getulio poderia vir para cá com sua comitiva.

 

Sigo caminhando e paro apenas para apreciar a visão espetacular da Serra Fina, uma gigantesca cadeia de montanhas que abriga o topo da serra, a Pedra da Mina com seus 2798 metros de altitude. Sinto-me orgulhoso de também já ter explorado todas estas montanhas. Consigo localizar também o Pico dos 3 Estados , o Cupim de Boi, O Marins e o Itaguaré. Em quarenta minutos finalmente chego à portaria superior do Itatiaia.

Estamos na entrada do famoso planalto de Itatiaia. Esta parte abriga uns dos recantos de montanha mais belos de todo o país. Aqui está o Pico das Agulhas Negras, um fantástico gigante de pedra com seu cume a 2791 metros de altitude. Para a segunda parte da minha travessia tive que conseguir uma autorização especial da administração do parque. A trilha que pretendo seguir está interditada ao público a vários anos.Tive que assinar um monte de documentos me responsabilizando por minha segurança.Claro que inventaram um monte de empecilho para que eu não seguisse na trilha sem guia,mas me mantive firme na minha convicção de seguir enfrente sem ter que me pendurar a pessoas que talvez tivessem muito menos experiência que eu, e não teve jeito,tiveram que me liberar.Paguei as devidas taxas e segui em frente,com passos firmes e decididos rumo ao meu objetivo.

 

Já estive aqui a uns 10 anos atrás, onde consegui escalar o Agulhas Negras e visitar a nascente do rio Aiuruoca.Sigo caminhando e me encantando com estas montanhas com vários afloramentos rochosos. Vejo do meu lado direito surgir o Pico do Couto com mais de 2600 metros de altitude. A estradinha continua em nível e em menos de meia hora de caminhada aparece no horizonte,ainda meio escondido o Agulhas Negras.Paro para descansar um pouco,beber uma água e apreciar a vegetação de altitude. Que lugar lindo!!!Espero em breve poder voltar aqui trazendo minha filha. A vontade que tenho é de ficar aqui por muito tempo apreciando esta paisagem, mas o tempo passa e tenho que alcançar o abrigo Macieiras antes do anoitecer. Quarenta minutos é o tempo que levo para chegar até o abrigo Rebouças,uma construção de pedra aos pés do Agulhas Negras.Me desvio do meu caminho,subo uma montanha 100 meros acima da estradinha. Aqui posso apreciar em todo o seu esplendor o Agulhas. Que montanha fascinante!!! Hipnotiza a gente. Faz nos sentir pequenos diante de tanta beleza. Tiro várias fotos e volto para estradinha.

 

Não demora muito e a estradinha vira trilha, que vai descendo acompanhando o Rio Campo Belo. Passo pela cachoeira das Flores e sigo descendo até a bifurcação para o Pico das Prateleiras. Gostaria muito de ir as Prateleiras, mas o tempo é curto e decido seguir enfrente. Daqui para frente entro em um caminho proibido para os turistas.Por um dia e meio estarei sozinho,entregue a minha própria sorte e a minha própria competência.Se algo me acontecer será problema meu, não poderei contar com ninguém.Aqui não pega celular, o terreno é hostil e perigoso,não sei porque mas isso me fascina muito,aqui me sinto dono do meu próprio destino,me sinto livre como nunca me senti antes,me sinto selvagem,parece que estou de volta aos tempos em que o homem só podia contar consigo mesmo e com o poder da natureza.

 

No início a trilha é confusa. Corre por dentro das canaletas de pedra, fico sem saber se é trilha ou rio. Tenho que usar toda a minha experiência de trilheiro para localizar o caminho. Sigo descendo até o vale entre estas duas gigantescas montanhas, quando derrepente o caminho acaba em uma pedra. No mapa topográfico que peguei na portaria do parque aparece um pedaço desta trilha e ele indicava uma curva a direita. Foi o que fiz, mas não encontrei trilha alguma. Caminhei em um charco com água e lama na altura da cintura e nada encontrei. Rodei perdido pelo brejo durante quase hora e meia e nada de encontrar a tal trilha. Voltei de novo ao local onde a trilha sumiu. Sentei-me em uma grande pedra, tomei fôlego, comi algo e voltei a procurar. O caminho que deveria ser o obviou era apenas um pequeno rio. Coloquei de novo minha mochila nas costas e encarei a água gelada e depois de 20 metros com a água pela cintura, localizei de novo minha trilha.Ufa !!!! Que sufoco!!!

 

Meu próximo objetivo é encontrar o antigo abrigo Massena. Desço até um vale onde sou obrigado de novo a enfiar o pé na lama. Avisto do outro lado a continuação desta trilha. Aperto o passo até chegar a uma bifurcação. Para onde ir? Desconfio que a trilha que vem da direita seja uma trilha que á muitos anos atrás tentei alcançar, partindo de Engenheiro Passos, mas tive que desistir por causa do mau tempo. Decido tomar a esquerda e depois de atravessar por uma floresta de arbustos dou de cara com o Abrigo Massena.

Fico espantado com o tamanho desta construção. Toda feita de pedra, dizem que foi construída a uns 40 anos atrás para ser uma pousada.Aqui existia uma estrada,mas a floresta tomou de volta.A construção está em ruínas,o teto está quase todo no chão. Só sobrou praticamente a sala da lareira, onde outrora montanhistas usavam o local para esticar seus sacos de dormir. Minha vontade é de fazer o mesmo. Mas resolvo tentar alcançar o Abrigo Macieiras antes do anoitecer. Procuro feito louco a continuação da trilha, mas não encontro. Daqui sai trilhas para todos os lados, mas nenhuma parece levar a lugar algum. Distancio-me uns 200 metros do abrigo e faço um circulo até interceptar o caminho que seguia na direção norte, totalmente do lado oposto de onde pensei que a encontraria, praticamente voltando.

 

O dia praticamente já está no fim, por isso resolvo apertar o passo e praticamente corro na trilha. Ela fez uma curva para direita e seguiu firme no rumo leste, sempre descendo. Por algumas vezes fazia alguns desvios em locais onde gigantescos desmoronamentos a engolia. O local é realmente perigoso e por um triz não caio em um grande buraco. Estou realmente exausto, preciso chegar logo para poder comer alguma coisa quente e descansar. Cruzo vários capões de mata e muitos riachos. Do meu lado esquerdo vejo um vale gigantesco, que provavelmente o acompanharei até o final da viagem. Finalmente às 05 da tarde avisto o telhado do Abrigo Macieiras. Fico muito feliz e eufórico. Ando os últimos metros até tropeçar na porta do meu “hotel” de selva. Largo minha mochila e desabo de cansado.

O abrigo Macieiras, a exemplo do abrigo Massena, não passa de uma tapera. Parte do assoalho afundou. Existem infiltrações por todos os lados,não há mais água nas torneiras,por isso sou obrigado a procura-la trinta metros a baixo junto a um riacho . O lugar é realmente macabro, lembra as casas de filmes de terror. Poderia servir muito bem de morada para espíritos malíguinos,demônios,assombrações,exus alados,seres extra-terrestre e aventureiros céticos ,como eu .

 

Por ser minha última noite na travessia, resolvo fazer um banquete. Enquanto meu fogareiro faz sua parte, aproveito para dar uma organizada na casa. Encontro um velho cobertor pendurado na parede e uso-o para forrar minha cama. Estendo meu saco de dormir e acendo uma vela. Fico sentado na varanda olhando para floresta escura e pensando nas coisas de ruim que poderia ter me acontecido. Poderia ter quebrado uma perna,ser picado por uma cobra,ser arrastado pelo rio,atingido por um raio,cair no abismo,atacado por um enxame de vespas,sofrido um ataque cardíaco,ter sido estraçalhado por uma onça,me engasgado com a comida,ser atingido pela queda de uma árvore, escorregado e batido a cabeça no chão,ter morrido de hipotermia, etc..A relação de perigos imaginários ou reais são bastante grandes. Estar sozinho requer muito cuidado e uma boa dose de experiência no que se está fazendo. Sei que ainda tenho muito a aprender , mas depois de quase vinte anos perambulando por quase todo tipo de lugar, consegui adquirir um conhecimento que me faz caminhar por lugares ermos como se estivesse no quintal de casa.

 

Janto a luz de velas e vou dormir. De madrugada ouço um barulho de alguma coisa andando no assoalho da casa. Coberto dos pés a cabeça por causa do frio, percebo que o invasor começa a se aproximar do meu quarto,tento me levantar para ver do que se trata mas como está muito escuro,não consegui nem chegar até a porta.A coisa ou seja lá o que for, voltou para a floresta.Poderia ter sido uma onça atraída pelo cheiro da minha comida,mas prefiro acreditar que tenha sido mesmo um pequeno cervo ou porco do mato,mas infelizmente nunca saberei o que realmente veio me visitar.

 

O dia amanhece lindo. Como alguma coisa e volto para a trilha. O orvalho da manhã me deixa todo molhado. Como é prazeroso caminhar por esta floresta preservada. São centenas de flôres diferentes, algumas só existem nesta região. Insetos são de incontáveis números. No meio da trilha encontro um lagarto tomando seu banho de sol matinal. O caminho segue sempre para baixo e vai ficando cada vez mais fechado. Sou obrigado a abrir o mato no peito. Já faz muito tempo que ninguém passa por aqui, sou um privilegiado de poder reabrir esta trilha e dar passagem para outros aventureiros que terão , como eu, o prazer de conhecer este paraíso. Em alguns momentos a trilha simplesmente desaparece. A floresta tomou de volta o espaço que sempre lhe pertenceu. Árvores, bambus, cipós, tombarão sobre a trilha. Em alguns lugares sou obrigado a me rastejar e me livrar de incontáveis espinhos. Depois de quase quatro horas finalmente consegui emergir desta floresta e alcanço a estradinha de terra que me levará a sede do Parque Nacional.

 

Quarenta minutos é o tempo que gasto para chegar ao primeiro posto de controle, que fica junto do poço do maromba. Ao se aproximar de mim o guarda parque pediu para ver minha autorização. Ele me perguntou quem era o meu guia e se ele ainda estava para trás. Foi muito engraçado ver a cara que ele fez quando disse que não havia guia algum e que eu estava sozinho, alias esta cara se repetiu várias vezes em todos os postos de fiscalização em que passei.

Sai da trilha todo sujo, com a roupa rasgada, todo arranhado. resolvo descer a trilha até o poço do maromba. É inacreditável a beleza deste lugar. A cachoeira não é muito alta, mas na sua base forma-se um poço extremamente verde e profundo, um prêmio para coroar esta linda travessia. A água estava gelada, mas seria um pecado ir embora sem dar um mergulho. Tiro a roupa e nem penso muito, subo em uma grande pedra e me atiro de ponta. È um prazer que não da para descrever, lavei a alma e tudo mais que estivesse sujo. Saio da água renovado e pronto para seguir enfrente, já que ainda tenho umas três ou quatro horas de caminhada até o final. Atravesso a ponte sobre o rio e vou conhecer a cachoeira véu de noivas, a mais alta da parte baixa do parque,uma bela queda de uns cinqüenta metros. Volto para estrada e em duas horas passo pela sede do Parque Nacional de Itatiaia que hoje por ser segunda-feira,está fechado. Na portaria depois do centro de visitantes consigo uma carona até a rodoviária de Itatiaia, esta pequena cidade as margens da Via Dutra .

 

Compro a passagem de volta par casa e como o ônibus vai demorar mais de duas horas, resolvo comer alguma coisa do outro lado da rodovia Dutra. Subo na passarela e é de lá que consigo avistar toda extensão da serra e do parque por onde caminhei durante todos estes dias. Avisto o cume do Pico das Agulhas Negras. Sinto-me muito cansado, mas imensamente feliz de poder ter tido a oportunidade de trilhar estes caminhos e estas trilhas que a muito tempo parece não receber a presença de outros aventureiros. Durante três dias estive praticamente sozinho, mas nunca me senti só. Maravilhei-me com a beleza deste lugar, cruzei por montanhas imensas e florestas espetaculares, atravessei rios de águas cristalinas e acampei em lugares mágicos. Perigos, sei que corri muitos, mas viver já um perigo . Alias como diz a letra da música que projetou o grupo de rock inglês Queem para o mundo, keep yoursel aline , que em bom português quer dizer: mantenha-se vivo. E foi o que tentei fazer durante todos estes dias, manter me vivo. Sentir o cheiro da natureza, ouvir o barulho das águas correndo sobre as pedras, ver o por do sol, redescobrir para que foram feitas as pernas, tocar a terra, deitar na grama,nadar no rio,subir nas árvores,comer frutas silvestres, atolar o pé na lama, cheirar as flores do campo, me pendurar nas pedras, contemplar o céu estrelado, beber a mais pura das águas, me encantar com os pássaros e os animais da floresta, escalar montanha.

 

Despeço-me deste lugar com a promessa de voltar um dia, mas desta vez arrastando atrás de mim minha filha .Eu que sempre detestei andar com guia, pretendo guia-la, na esperança que ela também aprenda a MANTER-SE VIVA.

 

 

 

DIVANEI / dezembro - 2008

Link para o comentário
  • 5 meses depois...
  • Membros

Oi Divanei.

Li com muita atenção o seu relato com o título "Agrande travessia de Itatiaia".

Gostei muito e confesso que causou até uma certa inveja.Gostaria de ter estado lá com você.

Estive pela primeira vez em itatiaia em 1981 quando a ecologia e o caminhada na montanha ainda não era moda.

Conheci o pico das Agulhas Negras e as Prateleiras quando até para comprar equipamento como mochila era difícil.

Conheci a nascente do Rio Airuoca, onde tive o prazer de acampar. Atrilha abrigo Rebouças Mauá não tive oportunidade de fazer mas, do abrigo a sede do Parque sim.

Foi uma das caminhadas mais espetaculares que já fiz. Parabéns pela sua descrição está perfeita. O abrigo Massena estava em 1888 em estado bem razoável. Apenas uma quantidade enorme de lixo se acumulava. Pergunto a você e antiga torre de TV ainda está de pé? E o abrigo do gerador ainda existe? Pelo que sei o Massena pertencia a fazendeiros da região que foram retirados quando Getúlio Vargas criou o parque.

O Abrigo Macieira tem este nome devido a uma plantação de maçã que existia na época. Quando passei por lá anda vi as árvores. Pelo seu relato está acabado. Tive um amigo que passou vários dias lá. E o abrigo Lamedo você save onde fica?

É bom saber noticias das trilas do parque pois estão fechadas a pelo menos vinte anos. Gostaria se possivel que me manda-se ma foto destas maravilhas. Meu e-mail é vgallea@terra.com.br lhe mandarei umas fotos antigas se for do seu agrado.

Um abraço do montanhista Valério.

Link para o comentário
  • Membros de Honra
Fico sentado na varanda olhando para floresta escura e pensando nas coisas de ruim que poderia ter me acontecido. Poderia ter quebrado uma perna,ser picado por uma cobra,ser arrastado pelo rio,atingido por um raio,cair no abismo,atacado por um enxame de vespas,sofrido um ataque cardíaco,ter sido estraçalhado por uma onça,me engasgado com a comida,ser atingido pela queda de uma árvore, escorregado e batido a cabeça no chão,ter morrido de hipotermia, etc..A relação de perigos imaginários ou reais são bastante grandes.

 

Divanei, diz o Amir Klink que a pior parte de suas viagens é na noite anterior à saída do porto, com o barco ainda amarrado. "E se um tempestate me pegar?" "E se rasgar as velas"? E SE. A p*rra do E SE é o que deixa muitos em casa, que enterra sonhos e projetos, e a gente vai deixando pra trás. E SE...

 

Parabéns pela audácia, pelo relato que prende a leitura e pela aventura magnífica. Faço votos de que possas partilhar esta trilha com tua pequena e que ela herde de ti o gosto pela aventura. ::otemo::

Link para o comentário
  • Membros de Honra

Então CACIUS ,

Como você deve ter notado ao ler o texto, sou assim mesmo , meio analfabeto . Não passei do ensino médio e com certeza não herdei o dom de escrever como vocês . Raramente escrevo as minhas aventuras . Só faço isso quando volto de algum lugar totalmente extasiado . Quando escrevo alguma coisa, tento passar sempre às raras pessoas que leem , tudo que senti, tentando encorajá-las a fazer o mesmo . Sempre achei que as área naturais são grandes escolas de cidadania, civismo e civilidade . O Brasil seria muito melhor se nosso povo frequentasse nossas florestas e nossas montanhas . O problema é que o nosso governo não ajuda e é raro não encontrarmos Parques Nacionais com administadores medíocres e suas regras burocrátas. Parte da nossa imprensa desonhece do assunto e passam para a população ideias erradas . Transformando nossas áreas naturais em lugares perigosos,habitadas por monstros terríveis e todo aquele " blá, blá , blá" que você já conhece .

Um abraço .

  • Gostei! 1
Link para o comentário
  • Membros de Honra

Divanei

 

 

Falou tudo:

 

"...minha própria família às vezes acha que as minhas faculdades mentais estão comprometidas. Dou muita risada disso tudo. Já me acostumei a dar uma banana para o pensamento hipócrita da sociedade que me cerca. Quase todos me condenam, mas sei que a maioria deles vive suas vidinha infelizes, se apegando a coisas que aos pouco os destrói e rouba sua liberdade e sei que a maioria nunca terá coragem de se livrar de velhos pré-conceitos e viverão presos para sempre num mundinho de aparências , tentando manter seus estátus sociais, mas respeito o modo de pensar de cada um, apenas tenho um pouco de pena."

 

Viver nossa libertade é tudo..isso é ser feliz.

 

abração

Link para o comentário
  • Membros de Honra

Olá Valério ,

Os abrigos estão realmente em ruínas, a torre e o abrigo de geradores também . Parece que agora com a nova administração as coisas começam a mudar um pouco lá em Itatiaia . Mas o descaso com a coisa pública ainda é muito grande . O Itatiaia, que é propriedade do povo deste país, sempre foi tratado como feudo de meia dúzia . Bom, os outros Parques Nacionais do Brasil não estão muitos diferentes . Cabe a nos , os únicos que realmente se impotam com estes locais , lutarmos para que esta situação mude .

Valeu, um abraço .

As fotos de toda a travessia estão na minha páguina do Orkut, é só digitar :

Divanei Goes de Paula e entrar nas fotos .

20090928135652.jpg

20090928141034.jpg

Link para o comentário
  • 2 semanas depois...
  • Membros

Caro amigo gostei muito do seu telato Divanei.

Eu tive o prazer de fazer a travessia do abrigo Rebouças a sede do parque no ano de 1988. E o seu relato é muito preciso.`

É uma pena que um parque como este localizado entre as duas maiores cidades esteja tão abandonado. Gostaria se possivel que me envia-se algumas fotos das duas trilhas, dos abrigos abandonados. Para mim seria em grande prazer ver como estão depois de tantos anos. Um abraço do trilheiro Valério Gallea e-mail vgallea@terra.com.br.

[picturethis=http://www.mochileiros.com/upload/galeria/fotos/20091012194118.jpg 500 375 Legenda da Foto]Escreva seu texto aqui. Apague este texto mas tome cuidado para não deletar as chaves [ ]. Onde está escrito Legenda da Foto, coloque o Nome da Foto e se quiser ver como fica antes de escrever seu texto clique no botão Prever[/picturethis]

[picturethis=http://www.mochileiros.com/upload/galeria/fotos/20091012194118.jpg 500 375 Legenda da Foto]Escreva seu texto aqui. Apague este texto mas tome cuidado para não deletar as chaves [ ]. Onde está escrito Legenda da Foto, coloque o Nome da Foto e se quiser ver como fica antes de escrever seu texto clique no botão Prever[/picturethis]

Link para o comentário
  • Membros de Honra

Valério ,

Realmente como eu escrevi no relato, os abrigos estão em ruínas e se nada for feito vai desabar. O Massena já está praticamente no chão e o Massieira não tarda a cair . O descaso com a coisa publica é realmente de dar dó e de fazer chorar .Parece que as coisas começam a mudar um pouco lá no Itatiaia, mas ainda esta a passos de tartaruga paraplégica .Aliás quase todos os Parques nacionais e Estaduais estão assim .A maioria dos diretores e administradores tratam os parques públicos como de fossem seu feudos. Aqui em São Paulo um dos nossos melhores parques está imprestável . Para ir ao PETAR você precisa contratar um guia ,vai virar o parque da farofa, infelismente .

AS FOTOS DA TRAVESSIA ESTÃO NA MINHA PAGUINA DO ORKUT, É SÓ DIGITAR :

Divanei Goes de Paula

Um abraço .

Link para o comentário

Participe da conversa

Você pode postar agora e se cadastrar mais tarde. Se você tem uma conta, faça o login para postar com sua conta.

Visitante
Responder

×   Você colou conteúdo com formatação.   Remover formatação

  Apenas 75 emojis são permitidos.

×   Seu link foi automaticamente incorporado.   Mostrar como link

×   Seu conteúdo anterior foi restaurado.   Limpar o editor

×   Não é possível colar imagens diretamente. Carregar ou inserir imagens do URL.

×
×
  • Criar Novo...