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AGULHAS DE ITATIAIA : O NASCIMENTO DE UMA MONTANHISTA


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Pai e Filha nas Agulhas de Itatiaia: Certidão de Nascimento de uma montanhista.

 

- Papai, me leva com você.

- Não dá filha, você ainda é muito nova e as montanhas são perigosas para as crianças.

Um dia você acorda e vê que o seu bebezinho cresceu e logo percebe que chegou a hora de levar para as montanhas. Não para uma ondulação qualquer, mas para uma montanha de gente grande, algo que a faça sentir o verdadeiro esplendor da rocha nua e crua, algo que a faça sentir a magnitude das grandes altitudes. Foi nesse intuito que partimos, aproveitando um feriado municipal e a possibilidade de pegar gelo, para o Parque Nacional de Itatiaia. Era uma quarta-feira à noite, chuvosa, mas o velho Niva não negou fogo e subiu a estradinha esburacada que da acesso ao parque, com os pés nas costas.

 

ITATIAIA é o mais velho parque nacional do Brasil. Foi criado em 1937 por Getúlio Vargas e hoje protege montanhas e florestas a perder de vista, entre as suas maiores atrações está o PICO DAS AGULHAS NEGRAS, a maior montanha do lugar e ponto mais alto do Estado do Rio de Janeiro, com 2.791 metros de altitude. Foi essa lendária montanha que eu escalei no final da década de 1990, dando início a minha jornada por grandes montanhas no Brasil e até fora do país. Escolher o Agulhas Negras para levar a minha filha é como se eu estivesse passando adiante o meu bastão de caminhada e justamente no local onde eu havia começado a quase 15 anos atrás. Por sorte conseguimos um lugar no concorrido camping do parque, que por ser meio de semana e estar chovendo , estava praticamente vazio. A chuva perdurou por toda a noite e como a área de camping estava alagada, montanos nossa barraca embaixo da área onde se lavam a louça. Na quinta-feira o tempo amanheceu com muita chuva e a possibilidade de nevar foi diminuindo. Logo chegou um grupo de umas 10 pessoas que além de conhecer o parque iriam fazer a Travessia da Serra Negra. O guia deles, um senhor chamado Luiz, comandou uma rebelião e naquele dia, todos que chegaram para acampar se dirigiram para o abrigo Rebouças e já que o local estava vazio, nos acomodamos nas camas do lugar. Só lá pelas 16 horas a chuva parou e então eu e a JULIA fomos dar uma caminhada até o sopé do Pico das Prateleiras, outra lendária montanha do Parque nacional.

 

Sexta-feira o dia amanheceu lindo e como a temperatura havia caído abaixo de zero grau, algumas poças de água congelaram. Tudo estava perfeito, mas uma coisa me deixava aflito: Agora o Parque Nacional esta exigindo que quem fosse para o Agulhas Negras teria que apresentar alguns equipamentos de segurança, entre eles, uma cadeirinha, uma corda de 30 metros e dois mosquetões. A corda que eu havia trazido só tinha 20 metros e vi logo que eu teria problemas para levar minha filha até o topo. Tentei então me juntar a algum grupo que fosse fazer a escalada, mas todo mundo acabava desconversando quando eu dizia que iria levar comigo a minha filha de 12 anos. Outra coisa que estava me deixando preocupado era que eu não lembrava mais de como era a subida e dos seus perigos. Lembrava-me apenas que naquele ano, dos quatro que tentaram chegar ao cume, somente eu e um amigo conseguimos, os outros voltaram por achar a subida um tanto perigosa. Apesar de não gostar de andar atrelado a guia nenhum, eu já estava admitindo a possibilidade de me juntar a um grupo guiado para ir até o topo, não queria ariscar a vida da minha filha desnecessariamente.

Bom, como a maioria dos grupos guiados só sairiam mesmo no sábado, resolvi aproveitar a sexta-feira ensolarada para levar minha filha para o Pedra do Altar, uma montanha fácil de subir e sem nenhum problema de navegação. Quando me preparava para sair, três rapazes que havíamos conhecido no abrigo Rebouças nos convidaram para subir o Agulhas com eles. Não pensei duas vezes, mudei meu rumo imediatamente, mas não antes sem sentir um calafrio na espinha, afinal de contas, o objetivo que me levará ao Parque Nacional estava a caminho muito mais cedo que eu esperava.

 

Depois dos nossos amigos darem o que parecia ser um “ tapa na macaca”, atravessamos o lago enfrente ao Abrigo Rebouças e localizamos a trilha que nos levaria para o sopé do Agulhas Negras. A trilha parte já a quase 2.400 metros de altitude, contorna um pequeno morrote pela esquerda e vai seguindo quase em nível e em menos de uma hora chega à famosa ponte pênsil. Atravessamos a ponte pênsil e em menos de 10 minutos tropeçamos no córrego das Agulhas Negras, onde abastecemos nossos cantis. Antes do córrego é o local que os fiscais do parque ficam para cobrar os equipamentos de segurança e a autorização para a subida, mas como era dia de semana, não vimos guarda nenhum por lá e foi só aí que fiquei sabendo que os meninos que estavam conosco não tinham equipamento nenhum. Pegamos a trilha e não demorou muito ,chegamos à rampa de pedra. A escalada começou.

 

As rampas do Agulhas Negras são bem ásperas e conferem uma grande aderência aos nossos pés, mas as vezes surgiam placas de gelo e a subida ficava perigosa. A Julia seguia sempre à frente e ia dominando com muita propriedade cada metro da rampa de pedra e só parava quando dava de cara com alguma placa de gelo gigante, onde usávamos o pretexto de mais uma fotografia, para pararmos para mais um descanso. Não demorou muito chegamos a grande parede inclinada de uns 20 metros, onde é preciso usar uma corda para seguir em frente. Lembro-me que a primeira vez que estive ali, subi essa parede sem corda alguma, mas não me lembrava por onde. Quando estávamos todos juntos no pé do paredão, que fica junto uma pequena mata, os meninos me disseram que não subiríamos por ali. O nosso caminho seria a trilha enfrente, por dentro da matinha. Subiríamos pelo caminho conhecido por VIA ÚTERO, que também é chamado de VIA FÁBRICA DE MACARRÃO. Pronto ! Foi aí que me arrepiei todo. Subir pela VIA NORMAL, já estava de mais para mim, agora os caras queriam ir pôr um lugar onde teríamos que escalar grandes pedras e nos enfiar por chaminés e becos perigos. Naquele momento balancei, e me perguntei se deveria mesmo expor a minha filha a um perigo que talvez fosse desnecessário. Olhei para minha filha, ela parecia estar bem. Senti que ela estava confiante, até ali, ela estava perfeita, sem reclamar e sem demonstrar nenhum medo excessivo, respirei fundo e disse:- VAMOS EMBORA GALERA, ATÉ O TOPO !

 

Abandonamos, portanto, o caminho tradicional e seguimos o caminho enfrente, que entra na matinha e logo começa subir emparedado por dentro da gigante fenda. Vamos subindo por gigantes matacões, escalaminhando por onde era possível, cada um tentando subir por onde parecia ser mais seguro. A Julia continuava seguindo à frente, sendo ajudada e supervisionada pelos meninos e eu acabei seguindo atrás, pois a minha enorme mochila sempre acabava entalando em alguma fenda e eu acabava me atrasando ao tentar desentalá-la. A subida a cada metro se tornava mais difícil e perigosa. Ganhávamos altura muito rapidamente e no horizonte ia se abrindo e descortinando uma paisagens espetacular. A temperatura aos poucos começava a baixar, o que indicava que o topo parecia próximo. Foi nesse momento que chegamos a uma parte da subida conhecida como ÚTERO ou FÁBRICA DE MACARÃO. Trata-se de uma passagem tão estreita, que a menor barriga, pode deixar o montanhista pelo caminho. Eu mesmo, que não passo de um chassi de grilo, tive dificuldade para passar pelo estreito buraco. Você entra de um lado e sai pelo outro, como se estivesse saindo de dentro da sua mãe, daí o nome Via Útero. Passado essa parte, começa a subida por uma fenda super estreita e é preciso praticamente usar técnicas de escaladas para superar os obstáculos.

 

De onde eu estava, sempre mais abaixo de todos, acompanhava a Julia com o olhar e a todo momento me surpreendia com as técnicas que a menina usava para superar os obstáculos, com o jeito que ela se segurava nas grandes rochas, parecia que ela havia nascido para fazer aquilo. Seguia firme, decida, fazia os movimentos de escalada com uma perfeição inacreditável. Atravessava por lugares, que muita gente grande já teria pedido arrego.

 

Finalmente chegamos à grande chaminé, onde havia duas possibilidades de subida: Uma saindo pela direita, onde é preciso fazer o movimento de subida, que deu o nome a essa passagem. E foi por essa que a Julia e os meninos passaram, a outra é uma saída pela esquerda, onde é preciso se esgueirar feito uma minhoca e seguir por uma espécie de túnel ou canaleta, que sobe e abandona de vez a fenda e foi por aí que eu passei, usando a camada de gelo para me escorregar por essa fenda. A pior parte já havia ficado para trás, mas não a parte mais perigosa. Independente de que lado se use para sair da fenda, o caminho seguirá sempre para a esquerda e logo à frete uma rampa perigosa e escorregadia terá que ser vencida. Um passo em falso e o montanhista poderá ser lançado no abismo. Neste trecho tirei a minha corda da mochila, instalei a cadeirinha na minha filha e um dos meninos subiu pela rampa e amarrou a corda a um grampo no topo da parede. Por causa do gelo, a canaleta ao lado da rampa ficou inacessível e uma corda poderia nos dar a segurança para a subida. Atravessamos este último obstáculo, contornamos a parede a nossa direita e nos encontramos com a outra rota de subida, a rota tradicional, chamada pôr muitos de CAMINHO DA VOVÓ, por ser a rota mais fácil para acessar o topo da montanha.

 

Os últimos metros são vencidos com extremo cuidado, pois há muitas fendas perigosas e todo cuidado é pouco. Nesse trecho consegui notar nos olhos da minha filha um certo medo, talvez por ser exposto de mais, ou talvez ela tenha sentido o poder avassalador do cume de uma montanha, a grandiosidade de uma das mais altas montanhas do país, o impressionante PICO DAS AGULHAS NEGRAS , 2.791 metros de altitude. No topo, nos abraçamos e tiramos uma foto clássica com a bandeira do Brasil ao nosso redor e de lá de cima, ficamos observando todas as outras montanhas do Parque Nacional aos nossos pés.

 

Descemos da grande montanha e seguimos desta vez pelo caminho tradicional, onde tivemos que fazer um rapel básico para descer pela parede que havíamos deixado quando decidimos seguir pela rota mais difícil na subida. O caminho de volta foi tranquilo e sem nenhum problema. Paramos para um descanso no córrego das Agulhas Negras e seguimos a passos largos para o Abrigo Rebouças, onde nos despedimos dos nossos amigos, que precisavam voltar para casa. Felizes e cansados, fomos para nossa barraca descansar e a noite enfrentamos nove graus abaixo de zero, segundo o termômetro do Parque Nacional. Na manhã seguinte tudo congelou, desde os lagos do Parque até a água do cantil que estava na nossa barraca e até o meu gorro amanheceu com gelo encima, foi um espetáculo incrível, mais um presente que eu e minha filha recebemos deste lindo lugar.

 

Depois de escalarmos o lendário Agulhas Negras, partimos para a subida da ASA DE HERMES. Uma das montanhas esquecidas do Itatiaia. A trilha é a mesma de quem vai para o Agulhas, mas quando chega depois da ponte, vira-se a esquerda e segue-se acompanhando o curso do córrego das Agulhas. Foi isso que fizemos, mas como não sabíamos onde era a trilha, fomos até bem acima de onde nasce o riacho, junto a um charco e de lá cruzamos por dentro da lama e fomos em direção a grande formação rochosa. Enfrentamos e atravessamos mato no peito e logo nos vimos perdidos em um mar de matacões e fendas perigosas . Estávamos desta vez somente eu e a Julia e naquele momento não tínhamos a ajuda de ninguém e teríamos que nos virar por nós mesmos. Tentei encontrar o caminho ,mas a cada metro percorrido nós nos esbarrávamos em grandes rochas que nos fechava o caminho. Deixei a Julia mordiscando um lanche e saí a procura de alguma trilha que pudesse nos levar ao topo do ASA DE HERMES. Fui até o pé da pedra, mas não encontrei caminho algum. Por sorte vi um montanhista no topo da montanha e perguntei por onde era a subida e ele me disse que eu deveria subir por trás. Guiando-me por suas dicas, me esgueirei por dentro de uma fenda e consegui encontrar uma pequena e imperceptível trilha que seguia encostada à montanha e logo consegui localizar uma pequena rampa de subida. Escalei a rocha e depois dei segurança com a corda para a Julia e logo ascendemos ao topo do ASA DE HERMES, 2.641 metros de altitude. Essa montanha é uma das mais fascinantes do Parque Nacional de Itatiaia, é uma formação rochosa em forma de asa e por incrível que pareça, quase ninguém sobe em seu topo. Centenas de pessoas vão para o Agulhas e outras centenas vão para o Prateleiras, enquanto o Asa de Hermes, passa até semanas sem receber ninguém. Foi justamente isso que percebemos ao assinar o livro de cume que existe e que fica bem embaixo da formação rochosa. Assinamos o livro e descemos rapidamente, acompanhando outros dois montanhistas, que havíamos encontrado no cume. Chegamos exaustos no Abrigo Rebouças, mais felizes por termos conquistado mais um gigante do Itatiaia.

 

No outro dia, já no domingo, subimos a segunda montanha mais alta do Parque Nacional, o MORRO DO COUTO, 2.680 metros, que é uma subida tranquila, mas com um visual de tirar o fôlego e essa foi nossa última caminhada antes de pegarmos a estrada e voltarmos para o mundo da segunda-feira.

 

E foi assim, em um feriado extremamente gelado, que peguei minha filha e fui mostrar-lhe o mundo das alturas, um mundo extremamente belo e simples. Um mundo onde as pessoas não competem com nada e com ninguém. Um mundo onde o montanhista abandona sua casa, abandona a civilização, abandona a alta tecnologia e todo o conforto que o cerca só para ter o prazer de poder, nem que for só por um instante , estar sozinho com sigo mesmo. Sentir que ainda serve para alguma coisa. Que ainda consegue vencer desafios, superar seus limites. É uma batalha que ele trava dentro de si. Compete com ele mesmo e tenta sempre vencer um inimigo imaginário, o mais poderoso de todos os inimigos:O medo de ter deixado a vida passar e não ter feito nada para mudar isso.

Divanei Goes de Paula – JULHO/ 2013

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