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Ida e volta de Superagui à Ilha do Cardoso pela praia deserta em um dia.


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Eu e meu amigo saímos de Paranaguá na quarta-feira de cinzas às duas e meia e chegamos em Superagui na no final da tarde sem tempo pra fazer muita coisa. Logo em frente ao pontão onde desembarcamos, conhecemos o seu Martelo, um pescador já com seus sessenta anos e muito solícito, que nos ofereceu sua ajuda. Com ele fomos até a casa do Ciro, que segundo o pessoal da Ilha (e pelo que vi aqui no mochileiros), era quem fazia o preço mais barato. Ficamos no quintal dele por sete reais o dia (depois de termos pechinchado), mas também ficamos sem água durante dois...

 

Tanto pelo Ciro como pelo Martelo, ficamos sabendo da travessia da praia deserta, que decidimos fazer na quinta de manhã. Logo que acordamos, fomos até o Bar do Magal, o único lugar da Ilha onde se podia alugar bicicletas. Depois de negociamos com o dono do bar (cujo apelido e semelhança com o cantor não eram mera coincidência...), conseguimos duas por 20 reais o dia e a sensação de que poderíamos ter conseguido por menos (ambas as bicicletas eram horríveis, a minha não tinha freio nem marcha, o aro estava torto e o banco me calejou a bunda no final do dia. A do meu amigo também não era muito diferente). Foi nessas condições que partimos para a travessia dos 38km da praia. Foi uma travessia linda e relaxante, durando menos do que esperávamos: fizemos tudo em uma hora e meia. No final, vimos que ainda podíamos continuar até chegar numa outra comunidade de pescadores mais a frente. Mas para isso, precisávamos pegar um trecho pelo mar (com a água no peito), pela mata de restinga e atravessar dois rios, também não muito rasos. Como eu e o Fabrício somos cabeças duras, resolvemos encarar e o resultado foi perder nossa comida, nosso chinelo e molhar todas as nossas coisas, inclusive meu celular, que não voltou até hoje...

 

Apesar de tudo conseguimos chegar, mas lá na vila percebemos que havia ainda outra trilha por dentro da mata. Resolvemos encará-la pra ver até onde dava, pois imaginávamos que por ela poderiamos chegar até a Ilha de Cardoso já no estado de São Paulo. Andamos mais alguns quilometros, às vezes com e às vezes sem bicicleta (dado que as condições da trilha não eram muito propícias para esse veículo) até que achamos uma casa em que uns pescadores nos recomendaram voltar pois não chegariamos a lugar nenhum. Como estávamos bem cansados, resolvemos acatar à sugestão e fizemos todo o caminho de volta até a Vila, onde encontramos um barqueiro que topou nos levar até o Cardoso para comermos e depois nos deixar de novo na praia deserta quando a maré estivesse baixa para podermos voltar sem atravessar o trecho pela mata e pelos rios.

 

Em Cardoso nós almoçamos (lá pelas quatro e meia da tarde) e conseguimos chegar até o extremo sul da ilha, que também é o extremo sul do estado de São Paulo. Foi uma sensação boa pisar no ponto mais austral do meu Estado, mas também um pouco incomoda, por ver todo o lixo que ali se acumulava trazido pela maré. Logo depois o barqueiro nos levou de volta à Ilha de Superagui, de onde começamos nossa volta pela praia deserta, dessa vez bem mais devagar pois já estávamos cansados.

 

No meio do caminho começou a anoitecer e para ajudar, a minha bicicleta começou a dar sinais de que não iria aguentar até o final. Dito e feito: Não dava mais para pedalar com ela. Ambos estávamos com medo de não conseguir chegar a tempo para devolver as bicicletas e termos que pagar duas diárias. Foi aí que eu disse para o meu amigo ir na frente com a bicicleta dele para acertar as coisas e avisar que eu chegaria mais tarde pois a minha havia quebrado. Ele foi e eu continuei a viagem a pé, sem noção de hora ou distância. Após algum tempo a noite realmente caiu e as nuvens que anunciavam chuva só ajudaram a aumentar o breu. Era a noite mais escura que já tinha visto, as únicas luzes eram as dos navios cargueiros que tremiam tênues bem longe no horizonte, um pouco maiores que luzes de estrelas. O escuro era tanto que mesmo com os meus sete graus de miopia, não fazia diferença usar ou não os óculos. Nesse ponto a audição e o tato eram mais importantes: para chegar à vila de pescadores, era preciso simplesmente que mantivesse o barulho do mar a minha esquerda e os pés na areia firme da zona entre marés para que não acabasse entrando na restinga. Guiar-me dessa forma era extremamente tranqüilo, a não ser pelo fato de termos passado por um rio no caminho de ida e saber que teria que atravessá-lo em algum momento durante a volta, correndo o risco de confundir o que era mar com o que era rio, e o que era praia com o que era leito.

 

O derradeiro momento chegou, percebi que mesmo com o barulho do mar a uma certa distância, sentia a água nos meus pés. Apesar de saber que não estava de fato no mar, tive que atravessar alguns trechos alagados (às vezes até a cintura) e outros secos, mas ainda com areia compacta. Até hoje não sei ao certo, mas pode ser que tenha atravessado os meandros do rio ou pequenas lagoas de água salgada deixadas pela retração da maré, já que ela estava muito mais baixa do que quando passamos por lá durante o dia. Porém, o que me intrigou nessas lagoas da praia foram os plânctons bioluminescentes que nelas se encontravam aos montes. No mar de Superagui é normal presenciar esses pequenos pontinhos luminosos enquanto remexemos a água durante a noite, contudo, nesses lagos, eles se encontravam numa quantidade extraordinária, tanto que a cada passo que dava, verdadeiras explosões luminosas se formavam e se propagavam. As ondulações que minhas pernas e a bicicleta faziam na água provocavam flashes de um verde intenso que seguiam na mesma direção, produzindo um efeito que jamais imaginara presenciar. Essa cintilância se tornou a fonte de luz principal daquele momento, capaz de me fazer enxergar a mim mesmo, a bicicleta e alguns centímetros ao redor.

 

Depois de ter me entretido o suficiente, atravessei a lagoa e pus-me de novo a caminho da vila. Passado mais algum tempo de caminhada, comecei a enxergar as primeiras luzes das casas nas praias e dos barcos ancorados próximos ao pontão. Tenho que reconhecer que senti certo alívio com isso. Pouco depois, passando a alguns metros de mim em sua bicicleta, escuto o meu amigo gritando, “Zé, é você?!”. Respondi que sim e ele me contou que também havia se confundido no trecho das piscinas naturais e que havia voltado um tanto para me procurar, mas não me encontrou. Na certa que passamos muito próximos um do outro sem nos darmos conta, graças à escuridão.

 

Ele seguiu o intervalo final em sua bike, para cumprir o objetivo inicial de entregá-la a tempo, eu a pé. Assim que cheguei, o bar ainda estava aberto e lá estava ele tomando um refrigerante a minha espera. Deixei também a minha bicicleta e parei um pouco para descansar antes de retornarmos ao nosso acampamento. Passamos mais dois dias na Ilha, mas nenhum tão intenso como esse, apenas fazendo algumas caminhadas durante o dia e curtindo a bioluminescência e uns goles de cataia durante a noite...

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