A chocante cremação dos corpos em Varanasi, Índia

Você já ouviu fala da cerimônia de cremação dos corpos em Varanasi? Aqui vai o meu relato de uma das cerimônias religiosas mais chocantes que presenciei. 

Estava numa vigem longa pela Ásia, onde tive oportunidade de fazer novos amigos como DJ Yabis do Dream Euro Trip, e visitar sete países, entre eles Tailândia, Indonésia, Myanmar e Nepal, finalmente cheguei à Índia. Confesso que já estava um pouco cansado de rodar pra cima e pra baixo em tuk-tuks, debaixo do sol quente e muita poeira, e também de ver tanta pobreza…
Mas quando pisei na Índia, tudo mudou. A energia desse país é tão grande, e a diferença cultural é tão intensa, que o meu espírito desbravador voltou à tona.

cremação de corpos
Camelo andando pelas ruas de Jaipur.

Depois de visitar Nova Déli, Jaipur, e Agra, finalmente cheguei à Varanasi, umas das cidades que eu mais queria visitar na Índia.
Peguei um ônibus em Agra, e 12h depois estava lá.
A primeira impressão foi que Varanasi era mais uma cidade suja, empoeirada e barulhenta como qualquer outra que visitei na Índia, e o tráfego era tão caótico, com motos, rick-shaws, tuk-tuks, carros, um monte de vacas, porcos e até mesmo macacos nas ruas.
A cidade, considerada uma das mais antigas do mundo, foi fundada cerca de 3000 anos atrás, e atrai pessoas de todos os lugares, especialmente os adeptos do hinduísmo. Eles acreditam que Varanasi é o lugar mais sagrado na Terra e foi fundada por Shiva (o Deus da Destruição e da Criação), e não por seres humanos.
Varanasi fica distante 17 km do local onde Buda deu seu primeiro discurso, e onde o budismo foi criado.

A incomum e inesperada boas-vindas

Na estação de ônibus, eu negociei a corrida de tuk-tuk com um motorista que mal falava inglês, e que aparentava estar um pouco bêbado. Ele disse que sabia a localização do meu hotel, mas depois teve que pegar alguém no meio do caminho para explicar-lhe a localização correta.
Após cerca de 20 minutos, paramos em frente a um hospital… Estava confuso, mas ele confirmou que o hotel ficava localizado atrás do hospital e tivemos que dar a volta. Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, ele pegou minha mala e seguiu em direção ao hotel, mas uma pessoa nos sugeriu ir pelo outro lado pois o tuk-tuk podia parar perto da entrada do hotel.
Enquanto caminhávamos por um beco que tinha esgoto transbordando do chão, admito que me senti inseguro sobre o tipo de hotel que estava localizado em tal viela…
Quando dobramos um beco, ouvi uma mistura de choro, espasmos e canto, e quando olhei para trás vi várias mulheres vestidas com saris agachadas no chão, algumas pessoas de pé de frente pra elas, e no meio um cadáver.
Dei uma olhada e vi que eles estavam cobrindo o corpo de uma idosa com tecidos brilhantes e dourados, e amarrando o corpo numa maca de bambu.
Uma mulher de cócoras no chão parecia estar chorando e cantando ao mesmo tempo estava sendo consolada por uma outra mulher, enquanto as pessoas de pé estavam todas olhando para o cadáver. E eu estava ali, espantando, paralisado e congelado no meio do beco.
E pensar que senão tivéssemos mudado nosso caminho, teria ficado cara a cara com um corpo na minha primeira hora em Varanasi.

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E isso era só 7h45min! Como eu só podia fazer o check-in às 11h, deixei minha mala no hotel, e decidi voltar para assistir um pouco mais do extraordinário funeral.
A mulher tinha parado de chorar; um homem vestindo uma camisa branca estava no telefone, enquanto um adolescente passava de uma casa para outra com um pote de barro que uma mulher encheu de água.
Pra ser sincero, achei a cena super surreal, um pouco triste e deprimente – as pessoas ali, de cócoras no chão em torno do cadáver, com esgoto correndo entre elas…
Fiquei um pouco mais, apenas observando, e quando levantaram o corpo, a mulher começou a chorar novamente, e uma outra jogou o pote de barro com água no chão.
As pessoas que transportavam o corpo cantavam “Deus é a verdade” em hindi, enquanto um homem jogava salgadinho de arroz no corpo.
Eles seguiram em marcha para o rio Ganges, onde ocorre a cerimônia de cremação dos corpos. Ao passar pelas pessoas nas ruas, algumas faziam sinais religiosos com as mãos.

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Pessoas carregando um corpo pelas ruas de Varanasi para ser cremado.

O Rio Ganges

Após tomar café da manhã e responder alguns emails, decidi dar uma caminhada na margem do rio.
O rio Ganges, que corre pela Índia e Bangladesh, é adorado como a deusa Ganga no Hinduísmo, e é considerado o rio mais sagrado pelos hindus. Hinduístas se banham em suas águas, prestam homenagem aos seus antepassados e deuses, oferecem flores e pétalas de rosa, colocam água em jarros de barro para usá-las em rituais, e também jogam as cinzas dos mortos no rio.
Apesar de Ganga ser considerado um dos cinco rios mais poluídos do mundo, é comum ver pessoas, indianos e também estrangeiros, tomando banho no rio, lavando roupas, saltando dos “ghats” (a escadaria de acesso ao rio), e orando na água.

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O tão venerado rio Ganges.

Há alguns belos palácios e antigos fortes nas margens do rio, e depois de caminhar por cerca de 15min, passei por algumas das pessoas que carregavam o corpo. Poucos passos depois, vi umas fogueiras, e quando vi os panos dourados espalhados pelo chão, não tive dúvidas que estava no local onde os ocorre a cerimônia de cremação dos corpos.

Estava super quente, e enquanto procurava uma sombra, um homem que falava inglês com dificuldade começou a falar comigo. Ele disse que era um “burning man” (cremador), e me apresentou seu irmão, que falava Inglês perfeitamente e pode me explicar tudo sobre o crematório à beira do rio Ganges.

A Cerimônia de Cremação dos Corpos

Kailash, que se apresentou também como um cremador, me disse que sua família tem dois lugares diferentes às margens do rio, onde as cremações ocorrem.
No lugar onde estávamos, há três pontos diferentes para a cremação: um para os ricos (em uma plataforma redonda cimentada); um para pessoas de média renda (na areia); e outro para os pobres (em uma plataforma cimentada elevada); todos localizadas em frente ao rio.
Ele também me disse que o lugar é aberto 24 horas, e como a Índia é um país super quente e os corpos se decompõe muito rapidamente no calor, a família tem que trazer o corpo para ser cremado no prazo máximo de cinco a sete horas após a morte.
Indianos são super religiosos e acreditam que assim que eles fazem a cerimônia, a alma do falecido (a) vai para o nirvana.

Kailash também me explicou o processo sobre a cerimônia de cremação dos corpos: quando uma pessoa morre, a família traz o corpo para a margem do rio, eles banham o corpo com água do rio para purificar a alma, enquanto isso, um membro da família raspa o cabelo, bigode ou barba, em respeito à pessoa que morreu.

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Cadáver sendo lavado na beira do rio Ganges, minutos antes de ser cremado no Harischandra Ghat

O membro mais próximo da família também tem que tomar banho no rio, e vestir-se todo de branco, pois o branco é o símbolo da pureza. Depois, ele tem que comprar cerca de 360 kg de madeira para queimar o corpo.
O cadáver é colocado cuidadosamente sobre a pilha de madeira (pira funerária) que foi preparado como uma cama na margem do rio e, em seguida, coberto com mais madeira.
Esse membro da família anda em torno do cadáver cinco vezes (representando os cinco elementos do hinduísmo) com uma tocha e, em seguida, acende a pra funerária.

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* Obs: Essa foto foi tirada no crematório maior, Mankarnika Ghat.

A cremação leva cerca de três a três horas e meia, e a família assisti e fica até o final.
Depois que Kailash se despediu, eu fiquei lá, assistindo um corpo sendo cremado. Eu vi um membro da família levantando um braço do cadáver com uma madeira pra poder ser queimado, enquanto os outros membros assistiam de pé proximo à fogueira; quando o pano branco que cobria cadáver se foi, os pés do cadáver foram revelados.
Confesso que achei chocante e perturbador ver o braço ainda em posição vertical sendo queimado, os pés pendurados na extremidade da fogueira, e os membros da família ajustando o corpo no fogo para que fosse completamente queimado.
Fiquei um pouco mais, sem saber exatamente o porquê… Talvez porque estava tão perplexo, talvez por causa da minha curiosidade mórbida, ou talvez porque eu não podia acreditar no que estava testemunhando… Provavelmente por causa de tudo isso.
Depois que o corpo está completamente queimado, o membro mais próximo da família joga um pote de barro cheio de água do rio Ganges sobre as cinzas como um último adeus ao falecido (a). As cinzas são então recolhidas e dispersas no rio pela família.

Quando deixei Harischandra Ghat, o crematório, vi algumas pessoas trazendo outro corpo para ser cremado, outras limpando o cadáver de uma jovem mulher com água, e um rapaz raspando o cabelo.

Varanasi: a cidade da vida e da morte

Com meu corpo coberto de cinzas, e minha mente conturbada, fiz todo o caminho de volta ao hotel.
A temperatura estava em torno de 39C, e as ruas de Varanasi estavam ainda mais movimentadas. Durante essa caminhada, senti que Varanasi tem algo diferente dos outros lugares. Das muitas casas e edifícios antigos que parecem que foram abandonados, destruídos, ou mesmo que podem desmoronar a qualquer momento; às ruas marrons cheias de buracos devido à construções; ao ar empoeirado que parece manter a cidade em uma eterna neblina… tudo isso combinado confere um ambiente místico e surreal à cidade.
Mas, ao mesmo tempo, as ruas são tão movimentadas, cheias de gente e de vida, que essa não pode ser uma cidade “destruída” (abandonada).
Eu acho que essa é a razão pela qual Varanasi é considerada a cidade da vida e da morte.

Com 80% da população da Índia pertencente à religião hindu, pessoas de todo o país trazem seus parentes para serem cremados em Varanasi. Há até mesmo hospitais que oferecem quartos para pessoas passarem seus últimos dias aqui, porque morrer em Varanasi é garantia de entrada para o céu.
Ainda estou comovido com tudo o que vi naquela manhã!
Para mim, Varanasi e, especialmente, a cerimônia de cremação dos corpos, foi uma dos coisas mais chocantes, perturbadoras, e ao mesmo tempo interessantes e espirituais que já vi.
Segundo a crença hindu, a destruição não é arbitrária, mas construtiva. Destruição também faz parte de uma nova criação, e todos os começos, necessitam e devem ter um fim, abrindo assim o caminho para mudanças benéficas.
Eu acho que é exatamente por isso que eu decidi fazer um curso de meditação em Varanasi. Algumas das minhas crenças morreram, e era hora de criar novas.
Por todas as dores, dificuldades e prazeres que temos na vida, no final nosso corpo será destruído.
Seja enterrado, cremado num crematório, ou na beira do rio na frente de todo mundo como em Varanasi, estamos passando apenas um tempo finito na Terra, e cabe a nós fazermos dele o melhor possível.
Namastê!

 * Tem um vídeo no meu site da minha conversa com o Kailash: A extraordinária cremação dos corpos em Varanasi (legendas em português).

cremação dos corpos
Mankarnika ghat, o maior crematório de Varanasi

6 comentários em “A chocante cremação dos corpos em Varanasi, Índia”

  1. Em breve, verei isso pessoalmente. Não tenho a menor ideia do quão pertubador isso será para mim. Por outro lado, sou ecumênica e respeito todas as religiões e crenças. Não existe o certo ou o errado. Para mim, a essência de tudo é o amor e a bondade, independente da religião, seja ela hinduísta, budista, católica, etc.

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    • Que maravilha, Ivone.
      A Índia é “amor” ou “ódio”. Tem gente que adora e vai várias vezes, tem gente que quando pisa os pés já quer ir embora…
      Acho que você vai gostar e vai administrar bem tudo isso.
      Abs e boa viagem.

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  2. É a Religião deles e temos que respeitá-los. Afinal, creem em Deus também.
    Que sejam felizes assim como sou no Cristianismo.

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