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A pedido dos participantes do fórum, posti aqui uma réplica do relato que fiz sobre a Travessia do Trigo que realizei nos dias 8 e 9 de Outubro de 2011. O material atualizado e original com todas as fotos e mapas se encontra no link abaixo:

 

[align=center][t3]https://sites.google.com/site/fleckventura/ferrovia-do-trigo[/t3][/align]

[align=right]Porto Alegre, 21 de Novembro de 2011[/align]

 

[align=center][t3]O RELATO[/t3][/align]

 

Tudo começou quando eu tinha por volta dos 12 anos de idade. Toda vez que eu ia aos meus avós eu escutava o trem passar pela ferrovia e me dava à maior vontade de ir lá ver como era aquele mostro barulhento. Meus avós, de origem italiana, moram a 30km de Bento Gonçalves, na Linha João Abott, em um lugar conhecido como Campinhos, fica entre Santa Tereza e Muçum. A Ferrovia do Trigo (EF-491), construída pelo exército brasileiro nos anos de 1970, passa bem próxima a casa deles, cerca de uns 500 metros subindo um morro em uma estradinha que só passam tratores e carroças.

 

Quando estava lá, diversas vezes via ou escutava o trem passar, aquilo sempre me chamava a atenção, ver aquela baita coisa passando e puxando um monte de vagões de forma bastante imponente, é muito bonito de se ver e escutar. Certa vez fui caminhando até a boca de um túnel que existe próximo a casa dos meus avós e se aquele dia tivesse uma lanterna teria atravessado ele. Mas todas vezes que ia até lá nunca tinha ou quando tinha as pilhas estavam muito fracas. Aquilo sempre ficou na minha cabeça e sempre desejei atravessar aquele túnel para ver o que tinha do outro lado!

 

Depois de muito tempo com aquilo em mente, levei uma lanterna para atravessar para o outro lado. Aquele túnel tem uns 300 metros de comprimento e é em curva, chega uma hora que a escuridão fica total e não se enxerga literalmente um palmo na frente do nariz! Senti bastante medo quando a escuridão ficou absoluta, estava sozinho e só escutava alguns ruídos não identificados e aquele barulho clássico de uma gota caindo em uma caverna. Dei graças a Deus quando vi a luz no outro lado do túnel e fui até lá para bater uma foto e ver o que tinha do outro lado, uma questão de orgulho e realização, pois do outro lado não tinha nada além do óbvio. Fiquei com muita vontade de seguir caminhando, a região é muito bonita, cheia de vales, muita mata nativa, cachoeiras e cascatas, mas acabei dando meia volta volver.

 

Anos mais tarde, conversando com um amigo meu, fiquei sabendo que ele fez uma caminhada na mesma ferrovia, só que em um lugar diferente, um pouco mais ao norte. Contou-me como fez a chamada Travessia da Ferrovia do Trigo de Guaporé a Muçum com seus 22 túneis e 11 viadutos distribuídos em 50 quilômetros e achei aquilo legal demais, surgiu dentro de mim uma louca vontade de fazê-la também!

 

Foi assim que começaram os preparativos. A maioria dos equipamentos eu já tinha, pois costumo viajar de moto e acampar, mas tive que pensar bem os imprevistos que poderiam estar me esperando e o que eu precisaria levar a mais, pois nunca tinha feito caminhadas tão longas e seria uma situação bastante diferente além do fato de ir sozinho.

 

Abaixo segue uma tabela do que eu levei, com execessão da barraca. Marquei com um asterisco alguns equipamentos, que em minha opinião, são obrigatórios e não podem faltar, de maneira nenhuma, para quem planeja fazer a travessia.

 

- Lanterna, com no mínimo 5 horas de independência *

- Velas *

- Isqueiro *

- Clor-in ou purificador de água equivalente *

- Filtro de café *

- Calçados próprios para trekking *

- Água 2 litros / dia *

- Garrafa PET para armazenamento de água *

- Saco de dornir *

- Barraca *

- Rede de descanço

- Espiriteira *

- Panela *

- Álcool *

- Prato e talheres *

- Refeições de macarrão instantâneo com sardinha ou atum enlatados *

- Refeições de comida liofilizada

- Sal

- Açúcar

- Café em pó

- Copo plástico descartável *

- Pão caseiro *

- Salame, charque ou qualquer outro tipo de carne para se armazenar em temperatura ambiente *

- Chapéu *

- Filtro solar *

- Relaxante muscular adesivo

- Papel higiênico

- Escova de dentes e creme dental

- CamelBak 1,5 litros

- Toalha

- Lona 4 x 4 metros

- Binóculos

- Canivete

- Máquina fotográfica *

- Celular para emergências

- Mapa da travessia *

 

[align=center]Ferrovia%20Trigo%201.JPG?height=400&width=300

Preparativos[/align]

 

Tendo os equipamentos em mãos restava agora definir uma data. Lendo relatos e conversando com meu amigo que já tinha feito a travessia fiquei sabendo que dois dias seriam muito pouco tempo e de fato é muito pouco tempo, então me programei para ir no dia 2 de Setembro, a empresa onde trabalho iria puxar a folga do dia 7 para segunda-feira, isso me daria o que eu precisava, três dias. Na véspera do dia 2consultei a previsão do tempo e eis que tenho uma surpresa, previsão de chuvas e temporais.

 

Fiquei chateado, senti aquela sensação de quando gastamos muito tempo preparando uma coisa e ela não dá certo, mas calma, calma, não criemos pânico! Devido ao feriado do dia 20 de Setembro, dia da Revolução Farroupilha aqui no Estado do Rio Grande do Sul, a empresa adotou a mesma política de trazer a folga para segunda-feira. Nova data, dia 16 de Setembro. Um dia antes, novamente, consultando os entendidos do tempo, previsão de chuvas e temporais.

 

Já era a segunda vez que tinha me programado para ir e não dava certo, resolvi então que no dia 8 de Outubro iria de qualquer jeito com chuva ou Sol, pois as últimas duas vezes não choveu quase nada e nem deu temporal nenhum, ninguém pode prever com exatidão a natureza. O feriado do dia 12 trouxe a folga para segunda-feira o que me dariam os três dias de que eu precisava. Como de costume, na véspera a previsão era de chuva, me lembro que deu Sol toda a semana e que no final de semana estava marcando tempo ruim, que raiva! A minha vontade era muito maior que qualquer chuvinha e fiz conforme havia programado.

 

[align=center]Ferrovia%20Trigo%202.JPG?height=400&width=300[/align]

[align=center]Previsão de Temporais[/align]

 

8 de Outubro de 2011, Sábado.

 

Saio de casa de moto as 04:45 da manhã, em direção a Muçum. Muçum fica a 160km de Porto Alegre. O trecho passa pela BR-386 e RS- 130 é todo asfaltado e em boas condições, existem 2 pedágios no caminho.

 

[align=center]Ferrovia%20Trigo%203.JPG?height=300&width=400[/align]

[align=center]Saindo de casa as 04:45[/align]

 

Cheguei em Muçum as 07:10, fui na média a 80 Km/h e não parei nenhuma vez. Quase chegando em Muçum peguei uma chuvinha de leve, só para molhar as pernas e pés, nada de mais. Fui direto para a rodoviária, ainda não sabia onde ia deixar a moto. Chegando lá e conversando com o Sr. José que cuida do boteco e rodoviária de Muçum, obtive autorização par a deixar a moto nos fundos. Sem flanelinha, sem estacionamento pago, sem preocupações.

 

O ônibus que vai para Guaporé sai de Muçum as 07:50 e a passagem custa menos de R$10,00, o ônibus demora aproximadamente 1 hora e 15 min para chegar lá. O telefone da rodoviária de Muçum, para quem quiser maiores informações é: (51) 3755-1170.

 

Chego em Guaporé em torno de 09:25, passei ao lado da ferrovia mas não desci, tinha que comprar pão e conseguir água antes de partir. No ônibus uma senhora me perguntou se eu estava indo no evento da Fórmula Truck que iria ter na cidade naqueles dias, eu nem sabia de nada respondi. Desci na rodoviária de Guaporé, passei em uma padaria que tem logo em frente para comer um pastel com café e comprar pão caseiro, salame, algumas balas de hortelã e também para me abastecer de água. Com tudo pronto e arrumado para partir começo a rumar em direção a ferrovia, atravessei quase toda a cidade caminhando, foi um erro não levar o pão e a água de casa pois poderia descer ao lado da ferrovia, ela passa bem ao lado do pórtico da cidade e o acesso é fácil.

 

Começo de verdade a travessia as 10:30 no quilômetro 60 da EF-491, a Ferrovia do Trigo.

 

[align=center]Ferrovia%20Trigo%204.JPG?height=300&width=400[/align]

[align=center]Iniciando a travessia[/align]

 

Parei a 1º vez para pegar algumas ameixas que estavam de bobeira em uma árvore bem próxima aos trilhos, depois de descansar um pouco segui caminhando. Não existem muitas árvores frutíferas no caminho nessa época que eu fui, somente alguns pés de ameixeiras. Notei que existem muitos pés de goiabeiras que na época apropriada pode ser uma boa fonte de alimento e energia.

 

Existem diversos pontos onde se pode pegar água em todo o trajeto. Pequenas cascatinhas, mangueiras que passam ao lado dos trilhos e caixas com água corrente que vem de cima de morros são comuns em todo o percurso. Água não é um problema, desde que tratada adequadamente. Eu usei Clorin, paguei R$12,00 uma cartela com 30 comprimidos, cada um pode ser misturado com 1 litro de água e aguardando 30 minutos á água fica potável.

 

O primeiro dos 22 túneis é o de nº 24 no quilômetro 55,705 com seus 529 metros de comprimento. Aqui vale salientar o quanto é importante levar uma lanterna, pois no meio do túnel se experimenta uma escuridão TOTAL!

 

[align=center]Ferrovia%20Trigo%205.JPG?height=300&width=400[/align]

[align=center]1º túnel[/align]

 

O tempo estava nublado, não vi a cara do Sol aquele dia. Parei para almoçar exatamente ao meio-dia pois foi quando escutei o barulho de uma cascata. Quando coloquei a primeira garfada na boca começou uma chuvinha fraca, deixei tudo de lado e corri para pegar a lona que levei junto e colocar em cima das coisas, uma forte apreensão se abateu, será que ia começar a chover o dia inteiro? Será que dessa vez os entendidos teriam acertado? Novamente não, foram só algumas gotas. Demorei mais ou menos 1 hora para preparar, comer e limpar as coisas, segui em frente sem chuva.

 

[align=center]Ferrovia%20Trigo%206.JPG?height=400&width=300[/align]

[align=center]Cascata do 1º almoço[/align]

 

Às 13 horas estava caminhando novamente. Não tem nada de interessante ou que mereça algum comentário do trecho de Guaporé até onde eu estava no momento, na verdade estava começando a me arrepender pois não tinha visto nada de mais em todo o percurso a não ser algumas quedas de água e trilhos de trem. Essa sensação mudou no momento em que cheguei no Viaduto Mula Preta, aí sim o bicho pegou!

 

[align=center]Ferrovia%20Trigo%207.JPG?height=300&width=400[/align]

[align=center]Viaduto Mula Preta[/align]

 

Até o momento não tinha passado nenhum trem por mim e nenhum passou naquele dia. Demorei mais de 15 minutos para atravessar o viaduto, foi bastante complicado, o peso nas costas e o espaço entre os dormentes onde se enxerga lá no fundo o chão me fizeram embaralharem os olhos e às vezes era necessário parar um tempo e recuperar a visão para poder continuar. Estava apreensivo e tenso pois poderia vir algum trem quando eu estivesse bem no meio do viaduto e ser obrigado a saltar para os refúgios que depois de 40 anos não me pareciam muito confiáveis e deveriam balançar bastante caso algum trem passasse em cima do viaduto. Após algum tempo caminhando em cima dos dormentes meu deu uma sensação de que estava empurrando a Terra com os pés e não estava saindo do lugar, muito engraçado! Deve-se tomar muito cuidado entre os passos para não cometer erros, não existe a possibilidade de cair lá em baixo mas se caso errar uma passada é bem provável que se torça um pé ou até quebre uma perna pois o pé irá cair direto pro fundo. Aquele trecho da ferrovia é o mais emocionante de todo o trajeto em minha opinião. Fortes emoções!

 

A noite se aproximava e eu ainda não tinha um lugar definido para armar o acampamento. Tinha levado somente uma rede, saco de dormir e uma lona para proteção da chuva, optei por não levar barraca por causa do peso. O primeiro problema foi arranjar duas árvores próximas o bastante para armar a rede, eu achei que seria bastante fácil devido a existir milhares de árvores na região, mas encontrar duas árvores com a distância certa e em um local sem muito mato foi difícil. Depois de algum tempo procurando achei duas árvores com a distância perfeita e com o chão limpo, sem mato. Logo surgiu outro problema, aonde amarrar a rede se não tinham galhos? As árvores tinham galhos somente em uma altura em não era possível amarrar a rede. Pensando nessa situação levei dois pregos para pregar na árvore caso isso acontecesse. Achar uma pedra para pregar não foi difícil, coloquei o prego na altura certa e encaixei a argola da rede neles, perfeito. Foi quando deitei em cima para ver se ela ia aguentar meu peso e cai com rede e tudo no chão! Eu estava praticamente no meio do caminho, e sabia que existia uma estação abandonada não muito longe dali, mas o tempo era curto, já eram 18:00 passadas e o Sol começava a se esconder atrás dos morros. Resolvi que iria usar a lona para fazer uma barraca improvisada e dormir no saco de dormir, não me restava outra solução. Arranjei um lugar e fui atrás de lenha para fazer fogo, ao lado dos trilhos existia uma estradinha , alguma coisa me chamou para andar naquela direção e para minha surpresa achei uma casa abandonada de 2 pisos, aquela era a minha salvação.

 

[align=center]Ferrovia%20Trigo%208.JPG?height=300&width=400[/align]

[align=center]Casa abandonada onde dormi[/align]

 

Entrei na casa para verificar as condições e logo percebi que seria um ótimo local parar passar a noite. Armei minha rede no segundo andar da casa e fiz uma fogueira para passar a noite.

 

[align=center]Ferrovia%20Trigo%209.JPG?height=300&width=400[/align]

[align=center]Rede armada[/align]

 

Madeira não é problema, existem muitos dormentes que são substituídos pela equipe de manutenção ao longo de toda ferrovia e em vários locais. Os dormentes servem muito bem como lenha para a fogueira, tem alguma coisa naquela madeira que faz com que ela pegue fogo muito facilmente e fiquem horas e horas queimando.

 

!!! IMPORTANTE !!!

É EXTREMAMENTE perigoso fazer fogueira com os dormentes encontrados na ferrovia

 

[align=center]Ferrovia%20Trigo%2010.JPG?height=300&width=400[/align]

[align=center]Fogueira[/align]

 

Cometi um gravíssimo erro de fazer a fogueira em baixo da estrutura de madeira da casa, não achei que aquilo seria um problema e até certo momento não foi. Depois de ter jantado e de horas na frente do fogo resolvi ir dormir, a fogueira já estava somente em brasas e não fornecia mais suas mais chamas tão confortantes em noites solitárias.

 

Assim que me deitei na rede, PÃÃÃM! Caio direto no chão, o nó que eu dei nas madeiras do teto da casa não foram muito bons. Fiquei uns 15 minutos tentando amarrar de uma forma que eu não caísse mais e depois de muitas tentativas achei uma maneira de amarrar a rede para que ela não desabasse novamente. Não tinha a mínima noção de dar nós, quando dependemos muito de algo damos um jeito, aprendi na marra. Quando deitei não me senti muito confortável, a rede era muito pequena e ficava muito curvada, não foi uma posição muito agradável para se dormir, mas era isso que tinha. O silêncio era tanto que escutava meu coração batendo e meu nariz puxando e soltando o ar, demorei para me acostumar com aquilo mas logo pego no sono com o ruído da chuva batendo no telhado.

 

Lá pelas tantas, acordo tossindo e escuto um barulho muito estranho, parecido com vento. Notei que o ar estava diferente, meio enevoado e quando olho para os lados levo um grande susto, o piso da casa estava pegando fogo bem atrás de mim! Levantei em um pulo e fiquei parado, sem saber o que fazer por uns 5 segundos que mais pareceram uma eternidade. Nesses 5 segundos se passaram diversas cenas em pensamentos pela minha cabeça. Primeiramente venho aquele pensamento: “Puta que pariu! O que eu vou fazer?!” Não sabia se pegava minhas coisas e saia correndo, se não pegava nada e salvava minha vida, se tentava apagar o fogo, se tinha como apagar o fogo, como ia apagar o fogo, se valia à pena apagar o fogo, a merda que podia dar se deixasse a casa toda pegar fogo, o que eu estava fazendo parado se tinha que fazer alguma coisa e outros tantos que não me recordo.

 

Depois da avaliação instintiva resolvi que ia ao menos tentar apagar o fogo, peguei a água que tinha tratado no dia anterior para consumo e joguei em cima do fogo onde as chamas eram maiores. Saiu muita fumaça e tive que sair do foco do incêndio, pois não conseguia mais respirar e nem abrir os olhos. Assim que me recupero olho para o fogo e noto que ele diminuiu bastante, volto com mais água e finalmente consigo controlar as chamas. Depois que gasto toda a água pego algumas madeiras do chão e abafo o restante das chamas que restaram.

 

Para minha sorte consigo controlar o incêndio e abro as janelas da casa, não conseguia mais respirar direito de tanta fumaça. Paro para avaliar os estragos, nada de muito grave, somente algumas partes do teto da casa queimadas. Cometi o grande erro de fazer a fogueira em baixo da estrutura da casa, em uma espécie de garagem, em cima tinha o segundo piso onde dormi, na parte que prendeu fogo não tinha piso, somente uma espécie de placas de conglomerado de madeira. Nem me passou pela cabeça que aquilo poderia causar algum problema. Eu estava bem, não tinha perdido nada, somente gasto toda a água que tinha tratado para consumir no outro dia. Volto a dormir na minha rede desconfortável.

 

[align=center]Ferrovia%20Trigo%2011.JPG?height=300&width=400[/align]

[align=center]Fogo na casa![/align]

 

9 de Outubro de 2011, Domingo.

 

Acordo com a buzina do trem, era o primeiro que ia passar desde que comecei a caminhada, espio pela janela do meu quarto improvisado ele puxando seus vagões. Preparo o café com o pouco da água que restou dentro do CamelBak, coloco alguns relaxantes musculares em formato adesivo nas costas e do lado do quadril, ajeito minhas coisas e saio a caminhar novamente. Mal começo a caminhar e os pés começam a doer na sola, tinha que caminhar mais de 30 quilômetros ainda e achei que aquilo seria o meu maior problema e realmente foi. Depois de uns 15 minutos caminhando passo pela estação abandonada de Dois Lajeados, um lugar muito bom para se acampar também. Fica praticamente no meio do caminho.

 

O dia está limpo e com uma temperatura agradável, nem muito quente e nem muito frio. Sigo em frente parando as vezes para bater algumas fotos, as vezes para aliviar o peso da mochila das costas e descansar um pouco.

 

Entro em mais um dos túneis, a essa altura já não sabia quantos já tinham passado e nem qual era o seu número pois a partir de Dois Lajeados as placas que identificam os túneis com seu número e extensão não existem mais, elas só voltam a aparecer em Muçum. A cerca de 100 metros da saída escuto uma buzina muito forte,era o trem chegando! Corro para um refúgio e por minha sorte aquele tinha uma saída para o exterior do túnel, fazendo com que a claridade da rua entrasse para dentro do túnel e se enxergasse melhor. Assim que o trem entra no túnel o barulho aumenta muito e surge um forte vento. Eu achava que aqueles refúgios eram somente frescuras e que não precisava entrar neles quando o trem fosse passar. Estava errado! Ainda bem que entrei, pois a máquina do trem passa muito próximo as extremidades do túnel, se não entrasse ele me levaria. Esse foi o único que vi passar ao meu lado, o movimento de trens estava bastante fraco naquele final de semana.

 

[align=center]Ferrovia%20Trigo%2012.JPG?height=300&width=400[/align]

[align=center]Trem passando dentro do túnel[/align]

 

Quando sai do túnel, notei que o Sol já estava bem em cima da cabeça. Escutei um barulho de água e a minha esquerda vejo que existe uma pedra saliente formando um muro de uns 2 metros, atrás do muro tinha uma entrada para a selva e era dali que aquele som vinha. Me lembrei nos relatos que li que tinha um lugar onde existia um desvio do curso da água por baixo dos trilhos.

 

[align=center]Ferrovia%20Trigo%2013.JPG?height=300&width=400[/align]

[align=center]Desvio d'água[/align]

 

Era por volta do meio dia e decidi que iria fazer o almoço ali mesmo, um lugar perfeito. Preparei um macarrão instantâneo, misturei com uma porção de comida liofilizada de arroz com legumes e frango e para deixar o prato com mais sustância misturei uma lata de atum. Depois de alimentado lavei a louça e em seguida me deu aquele sono mortal que dá depois do almoço. Sentei encostado em um murinho com a cabeça em pé e não demorou muito para começar a pescar, apoiei a cabeça nas pernas e não me lembro de mais nada. Acordei apavorado, achando que tinha dormido por muito tempo, mas verificando o relógio vejo que cochilei por exatos 30 minutos.

 

Um túnel antes do Viaduto do 13 escuto vozes de pessoas. É engraçado como nós ficamos com o pé atrás em lugares onde não existe muita gente, deveria ser ao contrário. Um pouco antes parei para escutar o que estava acontecendo em frente e percebo que eram apenas um grupo de turistas que vieram a ferrovia para tirar algumas fotos. Quando me aproximo mais dou um grito de cumprimento para avisar que estou chegando estilo: “Ooopa”! Eles fazem uma cara de espanto por ver aquele extraterrestre vindo da escuridão cheio de coisas penduradas, na verdade acho que eles não viram nada além da luz da minha lanterna. Quando me aproximei mais eles partem em retirada, não me perguntaram nada e eu não disse mais nada também. Às vezes olhavam para trás enquanto caminhavam para fora do túnel e cochichavam algo que não podia entender.

 

[align=center]Ferrovia%20Trigo%2014.JPG?height=300&width=400[/align]

[align=center]Túnel antes Viaduto 13[/align]

 

Caminho mais 10 minutos e a cerca de 300 metros a minha frente avisto um grupo de três pessoas caminhando na mesma direção que eu. Achei que estavam fazendo a travessia também, mas analisando melhor seus equipamentos percebi que só estavam dando uma volta por ali pois não carregavam quase nada, somente uma mochila pequena. Tentei apertar o passo para ver se os alcançava, mas pouco me aproximava, às vezes eles olhavam para trás, mas sempre caminhavam em frente sem parar. Depois de mais de 30 minutos caminhando e tentando os alcançar, já estava a mais ou menos uns 100 metros de distância dou um grito: “Peraííí!” Eles me aguardaram na saída de um pequeno túnel. Aproximo-me com um: “Opa, tudo bem?” Ismael, uma garota e um guri que não me lembro mais seus nomes vieram até ali pois um pouco mais a frente existia um viaduto do estilo do Mula Preta, somente os dormentes para se pisar. Seguimos juntos até lá conversando, ficavam me perguntando um monte de coisas a respeito do caminho e dos equipamentos que eu carregava. Trocamos contatos, tiramos umas fotos juntos, eles de mim e eu deles e se despedimos, me desejaram boa caminhada.

 

[align=center]Ferrovia%20Trigo%2015.JPG?height=300&width=400[/align]

[align=center]Foto com a gurizada[/align]

 

Desse ponto em diante meus pés estavam doendo muito e eu não caminhava mais, estava me arrastando, pisando de dormente em dormente para evitar as britas. O calor estava muito forte, olhando minhas reservas de água e fazendo um cálculo mental rápido de consumo percebi que deveria começar a racionar, pois se continuasse com o mesmo consumo andaria mais 2 quilômetros e minha água acabaria, estava tomando 3 goles a cada 200 ou 300 metros, reduzi para 5 goles a cada quilômetro. Faltavam mais de 10 quilômetros para chegar em Muçum. Eu não pensava em mais nada, só me arrastava para frente, entrei em transe. Não sei quanto tempo depois, pois perdi a noção do tempo nesse último trecho, escuto um trovão forte. Olhei para cima e enxerguei nuvens escuras, os raios e trovões eram tantos que fiquei com medo achando que se algum raio caísse muito próximo a mim poderia ser afetado por estar caminhando no meio dos trilhos, e se caísse um em cima dos trilhos com certeza iria me afetar, os pensamentos ficaram muito criativos naquelas horas. A chuva e o vento foram bastante fortes, uma típica bomba d’água. Eu carregava uma lona preta que serviu como proteção para chuva. Tentei bater algumas fotos, porém estava com as mãos ocupadas segurando a lona e quando tentei achar um jeitinho a lona virou um embrulho.

 

[align=center]Ferrovia%20Trigo%2016.JPG?height=300&width=400[/align]

[align=center]Temporal[/align]

 

 

A bomba d’água não durou mais de 30 minutos e logo que parou o Sol voltou deixando a paisagem mais bonita. Dei graças a Deus por não fazer tudo aquilo e ser recepcionado com chuva forte na chegada em Muçum.

 

[align=center]Ferrovia%20Trigo%2017.JPG?height=400&width=300[/align]

[align=center]Trilhos com Sol[/align]

 

Mais um tempo de caminhada e avisto a estação abandonada de Muçum e ao longe o viaduto que corta a cidade. Faltavam não mais de 3 quilômetros para completar a caminhada e fazendo alguns cálculos rápidos noto que chegarei lá no final do entardecer. Neste último trecho não pensava em mais em nada, só onde ia ser o meu próximo passo. Os pés doíam tanto que a cada passada que dava mudava minha expressão facial, realmente doíam muito! Estava também sentindo uma dor muito incômoda onde o fêmur encaixa no quadril, cada passada era um estalo, as costas, para minha surpresa não estavam doendo muito, talvez pelo fato de no início daquele dia ter colocado alguns relaxantes musculares.

 

Quando chego próximo ao viaduto de Muçum, não me seguro e começo a derramar algumas lágrimas, não sei por qual motivo, me deu uma sensação estranha que não sei explicar com palavras. Paro um dormente antes do início do viaduto e fico ali um tempo, relembrando de todos os acontecimentos que tinha passado, até que então resolvo dar o primeiro passo. O sol já tinha se escondido atrás dos morros dando uma coloração diferente ao local.

 

[align=center]Ferrovia%20Trigo%2018.JPG?height=300&width=400[/align]

[align=centerViaduto de Muçum[/align]Atravessei o viaduto e cheguei a boca de mais um túnel, foi então que notei que não tinha por onde descer, teria que voltar. Mas procurando um pouco melhor achei um local no meio do mato com um declive bem acentuado e escorregadio por conta da chuva que tinha caído, que saia no pátio de uma casinha simples. Quando comecei a descer apoiei o pé em uma pedra e ela rolou barranco a baixo caindo em cima de umas telhas e fazendo o maior barulho, o dono da casa saiu para ver o que estava acontecendo e se deparou comigo. Eu prontamente falei: “Ooobaa, tudo bem?” e ele me olhando com uma cara estranha não falou nada, só saiu da casa e abriu a porteirinha no seu pátio para eu sair de uma vez.

 

Não conseguia mais caminhar, estava literalmente com os pés arrastando, mudava a expressão facial a toda nova pisada. As pessoas me olhavam de uma maneira estranha. Eu só queria chegar a algum hotel comer alguma coisa e dormir. Na minha frente caminhavam uma senhora, uma menina e uma criança, as vezes olhavam para trás e cochichavam algo que não podia escutar. Parei para lavar as mãos em uma poça de água, pois estavam todas embarradas devido ao barranco que tinha descido logo atrás. Quando me aproximo mais, mesmo me arrastando estava caminhando um pouco mais rápido, chuto uma poça d’água sem querer e molho elas, alguém olhou para mim e falou alguma coisa em tom de xingamento, eu nem olhei para o lado. Segui em frente.

 

Cheguei a um posto de combustível para pedir informações de um lugar para passar a noite e fui indicado para ir ao Hotel Marchetti, mais algumas quadras e chego em frente ao hotel mas ao olhar para o lado, a primeira coisa que enxergo é uma máquina de sorvete da marca Italianinha na fachada de um barzinho, meu corpo trocou de lado quase que instintivamente indo em direção a macchinetta! No bar estavam sentados um senhor e uma senhora, o senhor prontamente venho para me atender. Pedi um cascão sabor misto com cobertura de chocolate e ao largar as tralhas na mesa e iniciar a degustação do meu sorvete começamos uma conversa que viraria uma amizade, contei a eles o que tinha feito, os dois ficaram com certa dúvida se acreditavam em mim, dúvida esta logo desfeita depois de mostrada as fotos.

 

Depois de algum tempo conversando, o senhor de nome Lucca, falou para eu cuidar do bar pois ele ia jantar. Assim que ele volta eu comento: “Bah! Mas que cheirinho bem bom de polenta brustolada!” E ele: “Tu quer que eu peça pra mãe fazer um prato pra ti?” Sem pensar muito eu retruco: “Mas bah!”. Ainda por cima ele pega uma Coca-Cola e me traz na mesa por conta da casa.

 

Ferrovia%20Trigo%2019.JPG?height=300&width=400

O prato

 

Ficamos bastante tempo conversando, o Sr. Lucca, é filho do dono do antigo frigorífico que existia em Muçum, atualmente em ruínas. Decretaram falência devido à inflação do início dos anos 90. E de fato, conforme uma pesquisa que fiz, do ano 1990 a 1994 o Brasil teve uma taxa de inflação média anual de 764%.

(Fonte:http://pt.wikipedia.org/wiki/Infla%C3%A7%C3%A3o#Hist.C3.B3rico_do_Quadro_Inflacion.C3.A1rio_no_Brasil)

 

Hoje ele está com uma fábrica do mesmo ramo quase pronta em uma cidade perto de Bonito em Mato Grosso do Sul. Vai para lá de tempos em tempos para resolver as últimas burocracias com o Ministério da Saúde antes de iniciar suas operações. As horas voam, já são quase 22:00 horas e tenho uma leve impressão que ele não quer mais continuar com o papo, então me despeço e vou para o hotel logo em frente.

 

Entro no quarto, largo as coisas no chão e deito na cama para descansar um pouco, acordo somente no outro dia pela manhã. Desci para tomar um belo de um café, paguei a estadia que ficou em R$30,00 e fui em direção a rodoviária pegar a moto para voltar para casa.

 

Porto Alegre, 1º de Novembro de 2011.

Editado por Visitante
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  • 2 semanas depois...
  • Membros de Honra

Caro Gfleck,

 

Bacana seu relato! No entanto peço que considere postá-lo em réplica também aqui no Mochileiros.com (não somente o link para um sítio externo). Assim enriquecemos o conteúdo disponível a esta comunidade da qual você também faz parte. Fica ainda o backup das suas aventuras para a posteridade... ::otemo::

 

Abraço!

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  • Membros de Honra
Edita aí, home, dei muita risada do teu relato.

Incendiário!

 

Nem fale, o "home" quase virou churrasquito defumado! ::lol4::

Fortes emoções nesta travessia... Merece ser postada aqui no Mochileiros, sem dúvida!

Posta aí logo! ::carai::

 

Abs,

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  • Membros
Parabéns, bela pernada!!! ::otemo::

Só uma coisa, os dormentes são tratados com produtos químicos contra o apodrecimento. Por isso os gases da sua queima são tóxicos, muito cuidado e nunca use pra cozinhar.

 

Boa observação...

 

Eu senti uma sensação meio estranha depois de usar eles para fazer a fogueira, talvez tenha inalado muita fumaça... :D

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