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Ramal Bento-Jaboticaba - uma travessia por um lugar que, acreditem, já teve trânsito férreo!


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  • Membros de Honra

Assumira a frente da fila – e consequentemente, o manejo do competente facão Corneta trazido pelo Felipe – a pouco mais de 10 minutos, quando a bifurcação apareceu. Não havia dúvidas. À esquerda, o trilho desenhava uma lógica e suave curva para o mesmo lado, e para a direita, perdendo rapidamente altitude, o que fora outrora uma estrada de manutenção nos levaria à beira do Rio das Antas com clara rapidez.

- Esquerda ou direita, gurizada?

Na verdade a história começara na quarta-feira, com umas mensagens trocadas com o Edver Carraro, pelo Orkut. Rápido no gatilho, ele percebeu que meu programa de Páscoa ferrara por conta do tempo e me convidou para fazer a travessia do ramal Bento-Jaboticaba, uma ferrovia que deixou de ser utilizada a aproximadamente 20 anos. Ligava os municípios de Carlos Barbosa, Garibaldi e Bento Gonçalves ao Tronco Principal Sul (TPS) da Rede Ferroviária Federal.

Convite aceito, em plena Sexta-Feira Santa eu caí da cama às 5:00 da manhã e duas horas depois eu estacionava o carro num paradouro, ao lado da bela ponte em arco sobre o Rio das Antas.

Do outro lado do rio, em algum ponto do alto da serra que eu acabara de descer, iniciaríamos a caminhada, de aproximados 18 quilômetros, mais uns 5 ou 6 até o carro de resgate, por estrada. Liguei pro Edver, que chegou, minutos depois, acompanhado do Felipe, enquanto eu comia um delicioso – e gigante – sanduíche colonial do restaurante ao lado da ponte, meu desjejum. Como a caminhada encerraria do outro lado do rio, deixamos meu carro ali mesmo, para o resgate, e subimos a serra no carro do Edver, nos conhecendo, trocando informações.

Antes das 8 horas já estávamos entrando na trilha, ao lado de uma banca de frutas, onde deixamos o carro, para iniciarmos a empreitada. O início nos pareceu exatamente o que eu vira nas fotos enviadas pelo Edver: os trilhos estavam cheios de lama e capim, pela altura dos joelhos, com moitas um pouco maiores, que exigiam o trabalho do facão.

A medida de nosso avanço, as teias de aranha cresciam de tamanho – as donas sempre apareciam grandes e com volumosos abdomes verdes – bem como o mato que tomava conta ia crescendo. Dos joelhos passou para a cintura, rapidamente estava na altura do peito e em minutos pouco víamos à frente. A presença de um viaduto foi notada apenas uns dez metros antes, pela duplicação do trilho (padrão, para estabilizar a composição).

O viaduto, que concluímos ser o Pedra Lisa, ou “da Sogra”, não era muito alto, uns 40 metros, e permitiu uma contemplação legal do vale do Rio das Antas, à nossa esquerda. Torramos uns minutos no sol inclemente e saímos. Dois passos além do viaduto, o mato novamente aparecia. Mais um trecho e passamos pelo primeiro túnel, o Bambino, com pouco mais de 200 metros de extensão. Os túneis seguem um padrão: as bocas são concretadas, mas dentro deles, há apenas rocha. Nestes, há concreto em todo o trecho, uma exceção. Refúgios se alternam à esquerda e à direita, em espaço mais ou menos regulares. Ao contrário dos túneis de ferrovias em uso, notamos aqui presença de morcegos, não muitos, mas grandes.

Mais um trecho de brejo sobre os trilhos e novamente a duplicação de trilhos indica viaduto. Este é mais alto e longo que o anterior, e direciona a ferrovia para a direita, ligando dois morros. Passado o viaduto, o Pingo d’Água, novo matagal, e depois, o mais longo túnel do trajeto, o do beijo (ei, este é o nome do viaduto, ninguém beijou ninguém, pelo menos na nossa passagem! Hahaha). Depois dele, passamos a ver muito lixo nos trilhos. Muito mesmo. Roupas, potes, pneus, sofá, geladeira, fogão. O ruído de veículos e cachorros nos fez entender: uma estrada passava logo acima.

11 da manhã emergimos dos trilhos na antiga estação São Luiz. Uma enorme caixa d’água verte o cristalino e gelado líquido, aplacando o calor daquele dia de sol. Consertamos a mochila do Felipe, tomamos uns goles d’água, beliscamos algumas coisas e logo saímos dali: estas estações viram vilas bem miseráveis, onde imperam sarnentos e magros cães, sujeira e lixo. Novamente, brejo, ora com paredões de ambos os lados, ora apenas do lado esquerdo, já que os trilhos descem até o Rio das Antas em uma volta e meia no sentido anti-horário. Isto quer dizer que na altura desta estação, há um túnel, um nível abaixo, de maneira que caminhávamos agora acima do trilho da mesma linha, abaixo e à direita de onde estávamos.

Fomos surpreendidos pela tomada dos trilhos por Lírios do Brejo. Caminhávamos sobre eles, derrubando-os com facão e bastões, e ríamos do inusitado perfume naquele ambiente que parecia querer nos barrar.

Uma hora e pouco batemos num curto túnel, o Piemonte, onde sequer usamos as lanternas, pois o outro lado era visível. Havíamos combinado de almoçar “no próximo túnel”, que seria este, mas sem discussão ou conversa, passamos direto.

O temor que secretamente todos os três alimentavam vinha à tona, ainda de forma sutil. Aparentemente seria impossível concluir o trajeto pelos trilhos. O passo era lento. Não era trekking, era vara-mato. Começamos a comentar isso, como possibilidade. O brejo parecia querer nos barrar a todo custo. Paramos uns minutos sobre uma singela rocha de uns 5 metros de comprimento, três de largura e quase dois de altura que caíra sobre os trilhos e começamos a tratar com mais seriedade o abandono. Próximo da uma da tarde, não atingíramos a metade do caminho. Retomamos a caminhada e logo o Felipe, que ia abrindo caminho com competência, avistou um túnel. Revigorados pela perspectiva, seguimos abrindo o brejo na base do facão e do peitaço, mas os cipós e espinhos pareciam irredutíveis.

Por alguns momentos passamos a duvidar da existência do túnel, porque ele não parecia estar a mais de um quilômetro. Nosso passo extremamente lento, contudo, nos fez crer que era miragem, efeito da mata fechada. Mas cerca de 40 minutos depois de avistando, o túnel reapareceu, uns 100 metros a frente, que nos exigiram mais de 5 minutos de facão, tropeço e arranhões. Atravessamos o túnel, rápido, pois não há obstáculos, observando inusitadas “capelas”, os abrigos aqui formados em concreto, e no final dele, por volta das 14:30, paramos para o almoço. O mais engraçado é que, depois, vendo os dados, notamos que o túnel chama “La Collacion”, ou seja, café da manhã, lanche! Vale dizer que o Edver nos presenteou neste momento com ovos de chocolate, no maior espírito pascal!

Conversamos mais seriamente sobre o abandono. Era óbvio que não seria possível encerrar o trajeto todo em um dia. Fomos prontos para varar brejinhos de 30 cm de folhagem, e não dois metros e meio, como vínhamos enfrentando desde cedo. O ritmo estava seriamente comprometido. Nossa quota de água estava perfeita para um dia de caminhada, não para dois, e as parcas águas que brotavam não nos pareciam confiáveis. Alimento não era problema, mas não tínhamos nada para bivacar nos túneis. Nenhum isolante, saco de dormir, lona, saco plástico, nada. E não foi imprudência, pois sabíamos que, pela geografia do local, apenas quando estivéssemos abaixo da estação São Luiz teríamos problema para abandono de emergência. De qualquer outro ponto, baixaríamos com tranqüilidade para o Rio das Antas ou mesmo para a estrada, então, não teríamos que nos preocupar.

Resolvemos ir adiante, e ver se a estrada não melhorava. Ficou igual. Facão agindo em 95% do tempo, e o resto ia sendo arrebentado com o corpo mesmo. Uma hora após o almoço, cerca de 4 da tarde, nos deparamos com a bifurcação. Eu ia na frente, e fiz a pergunta antevendo a reposta:

- Esquerda ou direita, gurizada?

Não houve discussão. O tempo, a previsão de chuva para a noite, o ritmo lento ditado pelo macegal, o censo de realidade já tinham decidido por nós. Simplesmente enveredei os cortes para baixo, para a direita. Aproximadamente 500 metros depois, e uns 30 abaixo, a estada virou bruscamente para esquerda, ainda mais nítida, mesmo sem a mata balizando em ambos os lados.

Descemos mais uns 300 e os trilhos encaixam em outra picada, também à esquerda. Outro tanto de mata e caímos em estrada de chão batido, sem qualquer vegetação. Parecia ser usada com regularidade. Tomamos à direita e em menos de cinco minutos, após ouvirmos o apito de uma vagoneta, caímos nos trilhos do TPS. Dobramos à esquerda, indo para cima da ponte sobre o Rio das Antas, olhar as corredeiras, a usina do outro lado do rio. Papeamos com dois casais que estavam por ali. Voltamos no sentido contrário, entrando no túnel em Y, pelo TPS.

 

Pelos planos iniciais, teríamos entrado pela outra “antena” do Y, mas acabamos saindo pelo lado dividido por ambos, a base, onde em menos de um quilômetro passamos pela Estação Jaboticaba. Uma parada na sombra pra rirmos, contamos causos e tomamos novamente a estrada. Em cerca de uma hora vencemos os aproximados 6 quilômetros até o outro lado da ponte do Rio das Antas, tomamos uma cerveja (uma só) e muita água – pagas pelo Edver!!!! – para comemorar a trip, sob olhares curiosos dos presentes com aqueles três doidos imundos que ali chegaram. Pegamos o carro e em 10 minutos nos despedimos, voltando o Edver e o Felipe para Veranópolis e eu para a casa dos meus pais, curtir a Páscoa em família.

 

Não nos entristecemos por não ter completado o trecho programado. Botar o pé na estrada tem disso: nem sempre as coisas são tão fáceis quanto parecem. Concluímos que as fotos enviadas devem ser de alguns pontos muito limpos, ou ainda, tiradas no inverno, quando o frio controla o crescimento da vegetação. Mas trilhar é andar, é descobrir, compartilhar, não simplesmente chegar ao destino. Certamente um dia voltaremos e completaremos a volta no morro, mas isto é detalhe. Dividir um dia, um gole d`água, as risadas, é muito mais importante.

Não dá pra deixar de agradecer o grande Edver Carraro, figuraça que teve a idéia, junto com o seu amigo Felipe – agora também meu amigo – e gentilmente me convidaram para tomar parte na aventura! Obrigado!

 

Tech Info

O Ramal Bento-Jaboticaba é um trecho de aproximadamente 50 quilômetros da chamada Ferrovia da Uva, ou Ferrovia do Vinho, construído principalmente para apoiar a construção do TPS, ao qual ele se une ao seu final. Obra do 1º Batalhão de Engenharia do Exército, responsável pelo próprio TPS, pela Ferrovia do Trigo e outras tantas, acompanha o Rio das Antas, fazendo a curiosa volta no morro próximo à divisa entre Bento Gonçalves e Veranópolis.

Está sem uso desde o final da década de 80, e tem com principais belezas os visuais do Rio das Antas, do Monte Claro e obviamente, a cereja do bolo, o túnel em Y.

Interceptamos este caminho após a metade, onde teríamos aproximadamente 18 km de jornada, por questões de logística, visual e riscos. Se tomássemos o caminho mais acima, entraríamos na periferia de Bento Gonçalves, onde o Edver já teve problemas.

 

Materiais, aqui, não tem grande exigência. Uma bota impermeável, meias sobressalentes, calça e um bom facão te tiram de qualquer problema. Nem se comenta a lanterna, indispensável para quem vai trilhar (literalmente) por onde há túneis.

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  • Membros de Honra

Grande Cacius!!!

 

Já te falei por e-mail, volto a repetir: o relato ficou ótimo, muito bem escrito!!! Parabéns!!!

Se não fossem as fotos, seria difícil acreditar na real situação da travessia. O Peter até comentou comigo por e-mail: "nunca vi trilha comer facão!!!".

 

Tirando a dificuldade, foi muito bom dividir aquele dia com vocês!!! Obrigado pela parceria!!! Ah, gostou dos ovinhos de chocolate neh???

 

Observo um item que acho fundamental para esse tipo de travessia: camiseta manga longa (o mato castiga muito os braços).

 

Ah, me deve um João Ruivo Caminhante, desse eu gosto ::tchann::

 

Não vai contar sobre o seu tombo??? ::lol4::

 

Abraço

Edy

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  • Membros de Honra

Guris,

Guris, nunca imaginei que ali existisse paisagens tão lindas.

 

Sempre que passamos por ali, paramos no Belvedere, ficamos algum tempo observando o Rio das Antas e aquela usina que foi feita.

 

Outro lugar que paramos é no restaurante que pelo relato, o Cacius deixou o carro, de onde se pode ver a bela ponte dos arcos.

 

Meu pai conta que, quando esteve no Seminário ele colhiam as uvas dos extintos parrerais que se estendiam da borda do rio para cima.

 

Outras histórias são da galera que se jogava da parte superior dos arcos ou andava de bicicleta ali em cima!

 

Muito bom o relato. O que esperar de um "adeva" né, Alemão?

 

Vcs moram no meu coração!

 

Bjk

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  • Membros de Honra

Valeu, gurizada.

 

Edver

Realmente manga longa é muito bom, mas no calor eu acho desconfortável. Mas estou todo lanhado.

João Ruivo vai junto na próxima, porque te devo esta bela trip.

Sobre o tombo, não fui o único, só o mais idiota. Como diz o gaudério, "as minhas ganha eu mesmo conto. As minhas perca, quem as ganhou que conte como ganha sua" ::lol3::

 

Haole

Fazer trilha com o gringo é sinônimo de passar bem, rapá. E ele paga a ceva no final, isso que não bebe! Recomendo!

 

Karencita

 

A região é bacaníssima. E tem que ver a continuação do TPS ::love::

O belvedere que tu falas fica pro outro lado, em direção à Veranópolis... parei lá uma vez, é realmente um visual muito bonito.

Sobre os arcos, hj há umas traves de concreto pra neguinho não subir de moto ou bike, mas vimos um casal cruzando a pé por cima dos arcos. Não tive vontade, acho perigoso e sem grande atrativo.

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  • Membros de Honra

Alemão

Vou cobrar o João Ruivo hein? E a próxima vai ser na tua região!

 

Haole

Gringo tem fama de ser mão-de-vaca, mas comigo não, gosto de passar bem!

Ah, e como era Páscoa, resolvi entrar no espírito da coisa (dei 2 ovos pra cada ::lol4:: ).

 

Karencita

"adeva"?? ::toma::::lol4::

Já vi galera cruzando arco de moto numa roda só!!!

 

Abraço

Edy

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  • Membros de Honra

Cacius,

 

Estou vendo alguns mapas da continuação do TPS, mas como tem muita coisa desativada, estes mapas que encontrei não estão procedendo!

 

 

Edy

 

Só vi andarem de bici ali, aquelas bicis com freio no pé ::essa::

 

Quanto ao adeva, falei porque o cara sabe escrever, né (cá entre nós) ::ahhhh::

 

 

Guris,

 

de ferrovias ativas no Rio Grande Amado o que temos?

 

Como estão estas:

 

Roca Sales / Passo Fundo

 

Marcelino Ramos / Santa Maria

 

POA / Uruguaiana

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  • Membros de Honra

A continuação do TPS, dali do Rio das Antas, passa sob a estrada e vai acompanhando o rio, cruzando por Dois Lajados - mas do lado oposto à ferrovia do trigo. Vai se encontrar com esta em Roca.

A Ferrovia do Trigo, que tem relatos e agora um guia do Edver, é justamente a Roca- PF, Karen. ::cool:::'>

Marcelino-SM não consigo visualizar. Mas deve ser legal a serrinha entre onde hoje fica Itaara e SM.. Já que ela vem de Júlio de Castilhos, deve passar por ali. Mas entrar em SM não deve ser legal. O Marcos e o Itaimbé, quer dizer, o Morotim devem saber mais...

PoA Uruguaiana não sei se tem muito atrativo.. passa por SM, Cacequi, né? Acho que é tudo meio plano e reto...

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  • Membros de Honra

Aaaaaah caminhadas por trilhos!!! Esse assunto sempre me interessou muito. Muito bacana o relato!!!!

 

Conheco alguns trechos da antiga FerroMinas, que ligava Cruzeiro-SP a Tres Coraçoes-MG no sul de Minas , mas sao todos ramais desativados tambem, desde 91 se nao me falha a memoria. Muita vontade de desbravar a descida da Mantiqueira no trecho Passa Quatro x Cruzeiro, mas deve estar pior que esse ramo ai e eu nao achei muita informacao confiavel que dava pra seguir....

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