Do Brasil ao Atacama, gastando pouco, de carro 1.0. Sim, é possível.

A SOBERANIA DE QUEM ROUBA O AR DE DEUS

Uma road trip até o Atacama com declarações de amor à Argentina andina.

É sobre o prazer de fazer história em povoados como Pampa del Infierno, cravado no umbigo do Chaco argentino, num corredor “bioceânico” aberto numa reta de intermináveis 500 quilômetros. Seja para uma foto na placa que anuncia o vilarejo de batismo pouco convencional, ou para o descanso no acostamento, ao lado das incontáveis lápides vermelhas e simplórias armadas em homenagem à lenda local, Gauchito Gil; viajar de carro, além de aventureiro, é uma permissão para fazer as mais importantes coisas bobas da vida: fazer o que queremos, com o dinheiro que temos, na hora que dá vontade. Sobre viajar de carro? Não, mais que isso. Sobre ser soberano, eu diria.

Celso é mais um na centena de cambistas que perambulam do lado de lá do parque que limita a fronteira seca entre Dionísio Cerqueira (SC), no Brasil, e Bernardo de Irigoyen, nas Misiones da Argentina. Assim de cara o malandro pode parecer mais um do bando de picaretas, redistribuindo dinheiro de uma região fantástica para o tráfico de armas e drogas, por meio de câmbio favorável e ilegal. Mas não, ele é apenas um sujeito simples e querido pelos comerciantes locais; de pele brugra e português fronteiriço, vende um peso argentino por 0,19 centavos de real no meio da rua. É um bom sujeito que carrega bolos de dinheiro nas mãos. Um sujeito necessário quando o controle de recursos é fator preponderante para viajantes duros, porém, durões.

A soberania de quem rouba o ar de Deus

Pessoal, saiu o teaser da nossa road trip pelo ATACAMA. A ideia é que disso surja um documentário ou narrativa cheio de imagens bacanas que fizemos durante a viagem e que nem sabemos que temos, não deu pra ver tudo ainda. Espero que gostem, comentem, marquem seus amigos e compartilhem pela bandeira do bom conteúdo na internet. Tem uma simpatia que diz: quem compartilha Mochila Crônica fará uma linda viagem em breve. Agradecimentos especiais aos parceiros da Invictus Tactical & Outdoor, do Moka Clube e da Acryflon Acrílicos.Pra quem ainda não leu a matéria sobre a trip, tá aqui: https://mochilacronica.com/2017/01/30/atacama-de-carro/#chile #argentina #jujuy #sata #atacama #roadtrip #trip #travel #viagem #viajar #adventure

Posted by Mochila Crônica on Monday, February 13, 2017

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Haviam me dito certa vez que a Gendarmería Nacional, a polícia argentina, era uma das mais nojentas e corruptas da América Latina e, quiçá, do mundo. Eu mesmo já tinha provado desse gosto de pólvora amarga numa viagem a Buenos Aires. Mas a caminho do norte do País, numa rota de pessoas mais humildes e provincianas – no melhor e mais puro sentido da palavra – a única ordem que se recebe nas constantes blitze é “adelante, por favor”, sempre munida de sorrisos; despreocupada com inspeções de Seguro Carta Verde, dois triângulos, mortalhas brancas para cobrir possíveis cadáveres e o kit de primeiros socorros com tesoura sem ponta. Itens que fazem algumas leis hermanas coexistirem em bestialidade siamesa com as nossas, escancarando espaço para o pagamento de propina por desavisados.

Argentina andina

Existem diversas nações dentro desse País muitas vezes visto de forma rasa como “a mini Europa da América do Sul”, geralmente pelos tolos que pagam fortunas numa experiência porteña regada a shows de tango, restaurantes finos e jogatina em cassinos de Puerto Madero. Ou então para aquela gente cafona que vê na neve um charme e nas roupas de frio uma oportunidade de ser chique por uma semana de ski em Bariloche. Bem, a Argentina andina é daqueles casos que devem mesmo ser isolados numa quarentena contra esse clássico e fútil nicho de turístico. Não é à toa que a Província de Salta é, para os íntimos, “Salta, la linda”; como toda bela e elegante mulher de respeito, seu âmago pertence a poucos e bons amantes.

À medida que o motor faz mais força para escalar os primeiros metros acima do nível do mar, deixando a planície infinita do Chaco para trás, repentinamente vacas são trocadas por lhamas e gomas de mascar viram folhas de coca. O relevo ganha curvas mais atraentes. Todo homem deveria pilotar por alguma daquelas estradas pitorescas e esburacadas e chacoalhantes pelo menos uma vez. Deveria fazer parte de um ritual de passagem para uma nova fase da vida. Daquelas coisas que os tios fazem com os sobrinhos: “vá lá, tome essa cerveja” ou então, “quando você completar 15 anos, vou te levar à zona”, isso deveria incluir também “dirija por uma estrada argentina, lá por Salta, e assim estarás separado dos meninos, ó, meu grande homem”.

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“Obispo” e seus pagãos.

E de repente árvores viram cactos gigantes na Cuesta del Obispo, ou Ruta Nacional 33; e dos rios só sobra a secura das pedras; e pra matar a sede, o mate tem a concorrência dos maravilhosos, aromáticos e alcoólicos vinhos de altitude drenados dos vinhedos de Payogasta, Cachí, Cafayate e todo o lunar Valle Calchaquíe; da Quebrada* de Las Flechas à Quebrada de Las Conchas; fazendo o contorno em “V”, na união da metade poeirenta da RN* 40 com a ardente febre asfáltica da RN 68. Um prato cheio para quem gosta de peregrinar salivando em busca de pratos típicos à base de carne de carneiro e pimentões ou tradicionais empanadas estufadas de um guisado perfumado de cominho, misturado a batatas e ovos, tudo coberto por uma massa carinhosamente sovada em gordura animal.

 

Dali, um pouco mais pra cima, onde os suspiros roubam oxigênio e os humanos culpam a altitude, um titã de aço desliza urrando por trilhos a 4.200 metros. É debaixo das armações do viaduto ferroviário “La Polvorilla”, perto de San Antonio de Los Cobres, que damos um até breve à hospitalidade e simpatia incomparável dos salteños margeando o caminho do Trem das Nuvens. Cheirando muña para amenizar os efeitos da falta de ar, buscamos no desértico, e desaconselhado por guias de viagem, Paso de Sico, o portal de entrada no Atacama. Quase 600 quilômetros sem postos de gasolina e escassas almas vivas, tanto na estrada, quanto no primeiro embate com a gélida cordialidade chilena. Ônus compensados por vistas incríveis.

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O viaduto La Polvorilla é o ponto final de passageiros que cavoucam paisagens de tirar o fôlego a 4.200 metros de altitude.

Mal venidos a Chile

A hostilidade fronteiriça parece ser disciplina universal em cursos que formam fiscais de fronteira. Durante a averiguação sanitária, alho e cebolas confiscados, e tom ameaçador quanto um pequeno carregamento de vinho. “Mas, é para o jantar”, tentei convencê-lo da estupidez apreendida em suas mãos. “Compre em San Pedro”, retrucou sem piedade, carregando os vegetais para jogar numa lixeira da oficina aduaneira. Menos mal, o puro néctar da uva ainda estava garantido para a noite. O fiscal da jaqueta verde e mau humor gratuito não podia imaginar que, naquele entardecer, seríamos lobos cordiais às vicunhas, uivando ao testemunhar uma lua minguante e poente às 9 da noite; no resquício avermelhado deixado pelo pôr do sol numa aquarela despejada no horizonte, aproveitando o assovio do vento como canção de ninar.

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Um quintal chamado Salar de Águas Calientes.

Clandestinamente, o dia e noite mais baratos aconteceram sob um dos céus mais estrelados do mundo, numa barraca com varanda para o Salar de Águas Calientes e seus flamingos cor de rosa. À luz do fogareiro, o jantar foi servido: o melhor macarrão ao molho branco, sem alhos e cebolas, que um viajante poderia comer. Uns 200 quilômetros antes de finalmente chegar ao hipster e cenográfico povoado de San Pedro de Atacama, é possível visitar as Piedras Rojas e outras infinidades de paisagens guardadas por montanhas e vulcões onipresentes como o Licancabur. Há ainda vilarejos mais modestos como Socaire e o complexo das Lagunas Altiplânicas com a dupla Miñiques e Miscanti.

Está tudo cravado no caminho aberto pelo “desaconselhável” Paso de Sico, antes de chegar à caríssima Saint Peter of Atacama. O observatório astronômico internacional a perder de vista no acostamento à direita; o Trópico de Capricórnio; a entrada para a Laguna Cejar à esquerda e, pra frente dela, duas crateras paralelas originadas pelo impacto de um meteorito deram forma aos “Ojos del Salar”, cheios da água verde que tonifica o olhar natural da paisagem. É bom lembrar que a Cejar, famosa por sua alta concentração de sal, impedindo a imersão completa do corpo, já não é mais tão atraente assim. O banho foi impedido após a descoberta da forte presença de arsênico. Tudo bem, não é o mais importante.

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Agora sim, um mergulho no Atacama.

San Pedro de Atacama é apenas um lugar cheio de sorte, um filho mimado do deserto mais seco e mais alto do planeta. Sorte de ser ponto de parada aclamado e caro e exclusivo no meio de uma natureza grátis, ou quase de graça. San Pedro de Atacama não deve ser confundido com o Deserto do Atacama em sua plenitude, mas apenas uma parte microscópica. Com alguns trocados é possível explorar atrações justas como o Valle de la Luna, onde seus paredões de pedra salgada estalam dando a impressão de que virão abaixo; ou apreciar o lindo assassinato solar diário na Piedra del Coyote. Um “púlpito” natural suspenso sobre o Valle de la Muerte que, hoje, também tem acesso impedido – salvo em casos de desobediência e coragem.  Há também atrações um pouco mais quentes, sódicas no preço e molhadas no deserto, como as Termas de Puritama. Águas vulcânicas que formam piscinas margeadas por vegetação bonita, um bom lugar para relaxar.

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Testemunhas de um assassinato diário, a “Piedra del Coyote” é o local de um crime cotidiano.

Fora isso e outros destinos como o boliviano e incomparável Salar de Uyuni (que do lado de lá, claro, é mais barato), os Gêiseres del Tatio, a cidade fantasma de Machuca e as ruínas de Pukará de Quitor, o resto pode ser resolvido quando a saudade da Argentina bater – o que não demora. Basta pegar a estrada em direção ao Paso de Jama e descobrir o Salar de Tara de forma gratuita, o que contrasta com os preços cartelizados praticados pelas agências de turismo de San Pedro. No mais, a “capital” do Atacama, tem sua igrejinha histórica com telhado barro e tronco de cacto, um cemitério colorido, uma pequena feira de frutas e verduras; ruas charmosas, casinhas de adobe coladas umas às outras, pratos nada econômicos e humor local digno de quem já não precisa mais ser receptivo e cordial para continuar vivendo de turismo carniceiro. Talvez por esse conjunto de legítimo glamour atacamenho, comer nos pés sujos das velhas atrás do Mercado Artesanal seja mais justo, digno e um pouco mais imersivo na cultura nativa.

Respire aliviado você está de volta à Argentina

Ainda que a altitude seja a mesma, a província de Jujuy, na Argentina, permite alívio ao bolso e alento ao coração com sorrisos fáceis e interações calorosas. Rasgada pela RN 52, as Salinas Grandes formam uma planície de sal de 12 mil hectares e é administrada por povos nativos. Com cerca de vinte reais um guia local e bem informado te leva pra dirigir na infinidade branca – como em um comercial de carro importado – e conhecer poços azuis com bordas de sal cristalizado – isso sem falar nas fotos tradicionais que brincam com a profundidade de campo. Com tanta matéria prima para tempero, fica impossível não provar também as tortilhas assadas e abanadas em brasa por algumas senhoras em casebres de blocos de sal, cobertos por telhas de zinco, uma espécie de iglu latinoamericano.

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Salinas Grandes.

O caminho sinuoso da Cuesta del Lipan tem como ponto final o povoado de Purmamarca, com seu morro que revela sete cores distintas avivadas pelos primeiros raios de sol da manhã. O artesanato indígena fica ainda mais forte em feiras como a de Tilcara, com ponchos, gorros e pantufas que exaltam lhamas. Lhamas presentes no formato “filé” em pratos deliciosos feitos à milanesa incomparável, excelente para ser devorado ao som da peñas, a música ao vivo, geralmente em voz e violão. Para a sobremesa uma tira de queijo branco, o quesillo, é facilmente encontrada nos acostamentos e pode (deve), ser saboreada acompanhada de doce de cayote. Um fruto local fibroso de gosto único, fisicamente semelhante à abóbora, adoçado com melaço.

Mais ao norte, sentindo o cheirinho da Bolívia, a Quebrada Humauaca, na vila que leva o mesmo nome, está o Cerro Hornocal. Uma montanha gigante com 14 cores, apelidada de “Paleta del Pintor”. São tonalidades de vermelho, verde e cinza, riscadas por uma divindade de dotes artísticos bastante aguçados, em movimentos que se parecem com frequências de batimentos cardíacos. E realmente, aquilo é de fazer o coração palpitar, tanto pela beleza, quanto pelo esforço aplicado para subir e descer a colina que esconde esse colorido monstro de minério.

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Cerro Hornocal e suas 14 “colores”.

Então, é sobre isso. Sobre a infinidade de sabores e humores; sobre o flerte do místico com o sacro. É sobre lendas que transbordam da natureza em ritos à Pachamama como um Deus; sobre mitos políticos europeus que, por meio de padres jesuítas estupraram uma cultura originária; sobre bandeirolas vermelhas que exaltam uma espécie de anti-herói à sarjeta de estradas nacionais, um cangaceiro de Corrientes devoto de Santa Morte, um Gauchito original chamado “Gil”. É sobre saber sentir o verdadeiro significado da palavra “milagre” destronando qualquer tipo de santidade de barro. Porque viajar é, na maioria dos casos, um acontecimento fora do comum e sem explicações naturais. É indomável, ato praticado apenas por aqueles que são soberanos de si mesmos.

Desempenho do carro – Curitiba x Atacama (ida e volta)

Automóvel: Clio 1.0 – 2014/2015

Quilometragem total: 6.553

Litros de combustível: 473

Média de consumo: 13.8 km por litro

Velocidade média: 59.4 km por hora

*Troca de óleo e pneus realizada antes da viagem.

**Apenas um pneu furado durante a jornada.

Documentação

Documento: em nome do proprietário.

Carta verde para mais de 15 dias na Argentina: R$ 80,00, em Bernardo de Irigoyen, fronteira.

Seguro SOAPEX para 5 dias no Chile: R$ 34,00 via internet.

 

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9 comentários em “Do Brasil ao Atacama, gastando pouco, de carro 1.0. Sim, é possível.”

  1. Olá, vocês acham viável fazer uma viagem dessas com uma criança de 2 anos? Temos medo de passar um frio extremo na estrada, isso acontece?

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  2. Nossa, que texto maravilhoso! Parabéns pelo relato que, além de ter mostrado a bela e inspiradora aventura, foi extremamente prazeroso de ler!

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  3. “Adoráveis Viajantes !!!
    Espetacular a Vossa aventura!!!!
    Pretendo viajar para SAN PEDRO em janeiro /20,,,,, também com um veículo 4×2,,,,, seus comentários serão de grande valia !!
    Parabéns !!
    Forte abraço !!

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  4. Clio é um dos melhores carros pra fazer uma trip pela Argentina. Ele é tipo gol lá, manutenção caso precise é barata e qualquer oficina lá faz.

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  5. Meus amigos… É sobre ter habilidade incrível com as palavras. O texto te faz querer demais ir até o próximo parágrafo, tanto quanto ao próximo destino ou situação que descreve. Parabéns pelo relato, escrito de forma tão cheia de estilo, sem todavia e por excesso do mesmo, afundar nele a informação.

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  6. Caramba!! Fiz quase a mesma viagem com um Ford ká, saíndo de São Borja e Voltando a Curitiba. haha.
    Rapaz, acha viável ir até o Uyuni com o 1.0?

    Abraço.

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  7. Que texto! Que viagem!
    Tragam 4 Estatuetas do Oscar para esse casal. 2 para cada.
    Duas delas para colocar no capô desse Clio guerreiro. A outra, pra guardar em casa num belo de um pedestal num canto da sala, caso percam a que colocaram no Clio.
    Sensacional!

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    • Olá, adorei o relato dessa viagem incrível!!!
      Irei ao Atacama em setembro desse ano e gostaria de saber sua opinião sobre as estradas, se são boas e bem sinalizadas em relação à localização dos passeios.
      Sentia necessidade de um 4×4 em algum momento para um passeuo que deixou de fazer lá por esse moitvo?
      Obrigada!

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