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Como uma brasileira foi parar na Irlanda.


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Da onde eu venho, de uma cidade no Sul de Minas Gerais localizada no Sudeste do meu país, do meu Brasil, todos dizem que “comemos quieto”, é um ditado popular para expressar que as pessoas desse lugar, do meu lugar, podem parecer ingênuas, quietas e simples, mas na verdade estão de olho em tudo, e conquistam o seu espaço no mundo sem fazer com que os outros percebam, e é isso que eu vim fazer aqui.

Desde que me lembro por gente, desde que minhas ideias, caráter e personalidade foram se formando eu pensava em me mudar, mas não porque não gostava da minha cidade, não, mas sim porque sempre quis conhecer o mundo, conhecer o que ainda não tinha visto, ainda não tinha tocado, não tinha sentido, conhecer o desconhecido.

Com apenas 17 anos, terminando o ensinando médio, tive que decidir o que queria ser, qual carreira seguir. Durante toda a minha vida a culinária foi muito presente, com uma família grande posso dizer que todos cozinham bem, tios, tias, primos, avó e meu pai, então não tive dúvidas, era a hora da terceira geração da família seguir o mesmo rumo e pôr a mão na massa literalmente.

Logo quando entrei para a faculdade, muitas responsabilidades começaram a surgir. Sim, eu mudei da minha cidade e fui para uma maior, com cerca de 533.501 habitantes, não conhecia ninguém e é claro, nenhum lugar. Olhando pelo lado pessoal, com certeza foi uma das melhores escolhas que já havia feito, as experiências de estar morando fora da minha cidade natal, fez com que eu abrisse os olhos e enxergasse que sempre poderia ir mais além. Comecei morando em uma república, dividindo um apartamento com mais três garotas, mas logo quis um pouco mais de privacidade e decidi ir morar sozinha, em um apartamento bem pequeno mas muito bem localizado, porque eu não tinha carro, e no Brasil o transporte público não é o que chamaria de item positivo do meu país. Foi também nesse meio tempo em que arranjei meu primeiro estágio em uma creche municipal da cidade, auxiliando na preparação das refeições das crianças. Meu curso tem a duração de dois anos, e durante todo o período procurei aproveitar ao máximo para fazer render o meu tempo, então para adquirir experiências diferentes fui pulando entre vários estágios e aprendendo cada vez mais em cada um deles.

Continuando na linha do tempo da época de faculdade, logo depois do meu estágio na creche que durou cerca de 8 meses, fui estagiar em um restaurante vegetariano que para completar a aventura ainda era em uma outra cidade, porém próxima da que eu morava, cerca de 40 minutos para chegar lá. Na mesma época, acontecia a copa das confederações no meu país, sim, no país do futebol, e surgiu então a oportunidade de trabalhar no evento, então eu fui, foram 16 horas dentro de um ônibus, que a empresa que faria o buffet contratou, para chegar até Brasília onde seria a abertura, lá trabalhamos cerca de 8 ou 10 horas e logo voltamos, mais 16 horas para enfim chegarmos em nossas casas e descansarmos. Alguns dias depois voltamos para trabalhar, mas dessa vez o evento seria no Rio de Janeiro, então foi mais perto, cerca de 5 horas dentro do ônibus.

Ao regressar dos eventos e com o fim do mesmo, surgiu uma nova oportunidade, um outro estágio, dessa vez na força aérea brasileira, então fui em buscas de novos desafios mais uma vez e me despedi do restaurante vegetariano, foi nesse estágio que eu mais aprendi dentre todos os outros, tanto que não queria que chegasse ao fim, lá eu consegui trabalhar com militares, soldados, sargentos, capitães, tenentes, todos juntos na cozinha fazendo com que seu tempo rendesse e com que seu trabalho tivesse um desfecho satisfatório para quem quer que fosse.

Com o tempo, fui aprendendo que as mudanças fazem parte de nossas vidas e fui me apaixonando cada vez mais por ela, e foi aí que tomei mais uma das melhores escolhas que poderia fazer, mais uma mudança, dessa vez fui mais além, primeiro porque meu instinto dizia que eu já era capaz, segundo porque eu já havia adquirido bastante autoconfiança e terceiro, porque como eu disse no começo do texto, as pessoas que vivem lá de onde eu venho são famosas por comerem quieta, então assim eu fui para o outro lado do atlântico, morar com uma tia, irmã da minha mãe, e toda a sua família sueca, sim, foi para lá que eu fui, para a terra dos vikings, uma mudança total, saindo de um verão com temperaturas de 30º para um inverno de -6º e mergulhando de cabeça em uma cultura até então desconhecida. Viver a rotina de uma família estrangeira, mesmo sendo minha tia, brasileira, também do Sul de Minas Gerais, o fato de estar em outro país muda todo o cenário, muda toda uma rotina e muitos costumes. Experiências pessoais foram sendo agregadas cada vez mais, lá, longe de tudo, longe das minhas raízes, dos meus pais, amigos, irmã e namorado, pelo incrível que pareça, nunca me senti sozinha, créditos para a família que me acolheu muito bem, entendendo que não era de uma hora para a outra que eu me adaptaria aos costumes deles e também créditos para mim, que mais uma vez larguei todo o conforto e aconchego de onde estava e coloquei minha cara a tapa. Não posso deixar de mencionar o fato de ter ajudado essa família a cuidar de seus filhos, duas crianças amáveis e totalmente imprevisíveis, que me fizeram ser uma pessoa ainda mais alerta e responsável. Por não ter tido meus próprios filhos até o momento, talvez as maneiras de lidar com uma rotina podem ganhar visões diferentes quando se tem uma criança em casa, sendo necessário adquirir ainda mais certeza em cada ato e aprendendo estar sempre a um passo à frente. Na Suécia também, além de cozinhar na casa dessa família constantemente, fiz dois eventos, na verdade os dois aniversários de ambas as crianças da casa, incluindo salgados e doces.

Outras experiências foram sendo vividas nessa nova fase, outros países e culturas foram sendo desbravados, cada lugar novo que era visitado fez com que valores fossem sendo absorvidos e a confiança em mim foi aumentando, e o fato de enxergar que para que consigamos alguma coisa só é necessário muito esforço, muito foco e muita dedicação foi se tornando cada vez mais colorido. Agora eu sei o que eu quero para mim, o que eu realmente quero é agregar na vida dos outros o que o mundo agrega para a minha, é trocar experiências e sentimentos, é mostrar para as pessoas que ainda não conseguiram enxergar o quão longe elas podem ir, basta persistir, no começo as coisas podem parecer meio preto e branco, é como se estivesse batendo em um tijolo para derrubar uma parede, parece que não está nem perto dela cair, mas de repente basta conseguir quebrar um e ela já se desmorona toda, assim foi quando lá no começo, com 17 anos dei meu primeiro passo para mudar da minha cidade, assim foi quando embarquei naquele avião rumo à Gotemburgo em 2014, assim foi quando regressei para o meu país e assim está sendo agora.

Regressar ao seu país é sempre difícil, não querer aceitar que todo aquele mundo novo agora está longe pode ser complicado, por isso logo trilhei meus objetivos para 2015, e em primeiro lugar e talvez único foi trabalhar, continuar adquirindo experiência na minha área para conseguir voltar. Consegui emprego em um restaurante industrial cozinhando para cerca de 200 pessoas e tendo que trabalhar com uma carga-horária pesada, muitas vezes tendo que passar do meu horário de serviço para suprir a falta de algum funcionário e mesmo como cozinheira muitas vezes tinha que lavar louça, esfregar chão, parede, coifa e até mesmo ajudava a servir os clientes e a transportar comida para outros estabelecimentos, além de auxiliar na montagem dos cardápios juntamente com uma nutricionista. Nesse meio tempo, surgiu também a oportunidade de lecionar, dar aulas para uma instituição com turmas de em média 8 alunos, cumprindo uma aula por semana cada uma, nessas aulas eram ensinados três pratos, sendo um principal um acompanhamento e uma sobremesa, e o curso era dividido em módulos. Sendo filha, neta e sobrinha de professores, acredito que outra coisa que está no meu sangue é saber passar para o próximo o conhecimento que trago comigo, por isso o intercâmbio me fascina, é possível fazer essa troca de uma maneira tão leve e fácil que assusta muitas pessoas. Só saí do Brasil ao formar todas as minhas turmas, ao ter certeza de que tinha conseguido agregar um pouco na vida de cada um que confiou em mim e no meu trabalho.

A partir de tudo isso, conhecer o mundo passou a ser um objetivo na minha vida, e um objetivo constante, pois sempre se quer mais e parece nunca saciar, talvez tenha a ver com o fato de eu ser curiosa e até um pouco atrevida, sem medo de tentar, sem medo de errar e sem medo de tentar de novo, e de novo se for necessário. E é isso que eu amo em cozinhar, nem sempre as coisas dão certo, a gente se chateia mas logo ergue a cabeça, pesquisa, faz testes e tenta de novo, até obter sucesso, até obter nosso objetivo, e arrancar sorrisos, conseguir das pessoas aquela sensação de prazer, e é possível colocar em um só prato de restaurante uma história, uma lembrança de determinado lugar ou ocasião especial, e é isso que eu quero não só adquirir aqui na Irlanda, como também agregar para a Irlanda, um pouco das minhas raízes, da minha história e das minhas andanças, pois assim como viajar, a gastronomia também é cultura e precisa ser disseminada entre os povos, pois o que senão uma mesa bem servida cercada de pessoas seria mais sinônimo de felicidade? Não pertence ao tempo moderno dizer que poderia ser outra coisa, pois esse poder já é de nossos ancestrais, e digo não só dos meus, mas dos seus e de todos que hoje vivem nesse planeta.

Só é preciso quebrar o primeiro tijolo.

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