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Nos trilhos da guerrilha


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:arrow: FONTE: Zero Hora

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Dois estampidos, dois clarões e a locomotiva para. No primeiro vagão, ouvem-se passos no teto. Jean du Dieu, chefe do comboio que corta o Congo da costa até Brazzaville, a capital, olha o relógio: 19h52min. Cutuca o vizinho de assento e avisa: – Os rebeldes tomaram o trem.

 

Em reportagem da série que se iniciou no Marrocos e se estendeu por 16 países e 14 mil quilômetros até a chegada à África do Sul, o país da Copa do Mundo de 2010, o repórter Rodrigo Cavalheiro conta a história dos viajantes de uma linha de trem do Congo. Eles enfrentam a guerrilha de seu país em típico conflito africano.

 

Detalhe: um dos rebeldes exibe a camiseta do time inglês Chelsea.

 

Os que viajam amontoados no corredor abrem espaço para um jovem de estatura mediana e barbicha. A cara do jogador Zé Roberto no corpo de Che Guevara. Usa coturnos negros puídos e calças camufladas desbotadas. Sobre o ombro esquerdo leva um rifle russo, que golpeia involuntariamente a cabeça de um ou outro passageiro enquanto caminha. A imagem clássica do rebelde, não fosse um toque do século 21: uma camiseta fosforescente do inglês Chelsea, um uniforme de quem desdenha a camuflagem. O homem saúda com a cabeça a Jean, que retribui.

 

– Nos últimos tempos têm ocorrido problemas. Esta região é dominada pela guerrilha, que expulsa os militares encarregados de proteger o comboio. Agora os rebeldes farão a segurança até Brazzaville – explica Jean.

 

O trem deixa a estação de Loutété, metade do caminho, com os passageiros ainda debruçados nas janelas. Alguns compram plátanos e farinha de mandioca enrolada em folhas de banana.

 

A viagem começou em Dolisie com 13 horas de atraso, dezenas de militares empoleirados na locomotiva e no teto e cem pessoas em cada vagão para 50. A passagem de primeira classe custa 13 mil cefas (R$ 50), mas não garante assento. São 24 horas ou 300 quilômetros que dezenas fazem em pé. Estrangeiros com sorte são colocados por um militar ao lado do inspetor “por segurança”. Quem não viaja em pé senta em banquinhos ou na guarda das rasgadas e confortáveis poltronas. A maioria transforma a própria mercadoria em colchão ou cadeira.

 

Quatro guerrilheiros guardam o primeiro vagão. Dois sentam atrás do inspetor, um controla o meio e o último, sem farda, se reveza entre o teto e os assentos. Entra e sai pela janela. Perto da meia-noite, começa a revista das bagagens. Um passageiro coloca a filha para dormir sobre a bolsa em que leva seu dinheiro. Quer evitar o pedágio.

 

– Você, 500 cefas (R$ 2). E você, 250 (R$ 1) – diz um dos soldados, caminhando lentamente pelo vagão.

 

O valor da extorsão não é alto. Nem é preciso. Tomar ocasionalmente um trem superlotado permite à guerrilha se armar contra o governo do presidente Denis Sassou Nguesso, reeleito este mês. O estrangeiro finge que dorme, o boné tapando o rosto, quando o guerrilheiro o cutuca na perna com a base do rifle.

 

– Mundele! – diz sorrindo.

 

– Opa, tudo bem? Não falo francês, só português – responde em francês(!).

 

– Ih, e como vamos conversar? – retruca em francês, arrancando risos dos passageiros.

 

– Em português. Bom dia!

 

– Bom dia – responde, agora em português, o guerrilheiro fosforecente.

 

A conversa descontrai o ambiente. O chefe se retira sem revistar a bagagem do estrangeiro (ninguém toca no inspetor ou em quem está sob sua guarda). Só volta a aparecer na manhã seguinte, já em Brazzaville.

 

– Tudo bem na viagem, chefe? – pergunta o projeto de Che.

 

O ícone argentino passou disfarçado por Brazzaville em 1965, depois de renunciar aos cargos e à cidadania cubana. Lutou nas selvas da vizinha República Democrática do Congo, sem êxito. Mais de 40 anos depois, o encontro de um guerrilheiro e um mochileiro gera sentimentos contraditórios no que carrega o rifle.

 

– Um deles me parou no corredor e disse todo contente “é o primeiro mundele que vejo” – conta Jean.

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