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Campos rupestres: lição de teimosia


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FONTE: EPTV

http://eptv.globo.com/emissoras/emissoras_interna.aspx?271829

 

 

[align=justify]Imagine viver ao relento num lugar em que, durante o dia, a temperatura do solo chegue a 50 ou até 60oC e, durante a noite, em função da altitude, caia para quase zero. Pense na trabalheira de encontrar água num ambiente em que a estiagem pode durar até cinco meses por ano, o solo é coalhado de pedras e o fogo corre rápido pela vegetação rasteira, freqüente e descontrolado. Agora multiplique as dificuldades pela impossibilidade de locomoção. Aí se tem uma vaga idéia das condições adversas que as plantas dos campos rupestres enfrentam para sobreviver na Cadeia do Espinhaço e Serra do Cipó, em Minas Gerais.

 

Apesar das adversidades, quando se inicia a temporada de chuvas, de outubro a março, a paisagem desolada se modifica completamente. O verde toma conta do cenário, pontilhado de flores que cobrem os campos. Pequenas, múltiplas, isoladas, agrupadas, em cachos, em buquês naturais, elas teimam em encher nossos olhos ao menor afago do clima. Sustentam um ciclo de vida que beira o improvável, numa fusão de cores em que se destacam os pontos brancos das sempre-vivas (criocauláceas), o roxo das canelas-de-ema (velloziáceas), os vários tons de rosa das quaresmeiras (melastomatáceas) e o amarelo das xiridáceas.

 

"Essas plantas apresentam adaptações contra a perda de água e contra o fogo", explica Paulo Sano, pesquisador da Botânica da Universidade de São Paulo (USP). "Algumas delas têm tecidos espessados, ou armazenadores de água, ou ainda isolantes térmicos. Outras se adaptaram para aproveitar a água da neblina que cobre as serras durante a noite e de manhã cedo, sempre presente, em qualquer época do ano, seja tempo de seca ou de chuva."

 

As sempre-vivas, que pertencem à família Eriocaulaceae, são as mais conhecidas. Existem mais de mil espécies dessa família no mundo, 60% das quais ocorrem no Brasil e 47% só em Minas Gerais. São as plantas que mais sofrem impactos de coleta, pois são extraídas diretamente dos campos - não há plantio - e comercializadas às toneladas no mercado externo, usadas principalmente para ornamentação de interiores.

 

"Nosso trabalho, de botânicos, é conhecer essas espécies impactadas e tentar oferecer alternativas para seu manejo. Diversas famílias das comunidades locais sobrevivem da coleta dessas plantas. A preservação das espécies é conflitante com a sobrevivência de populações humanas e o que tentamos fazer é harmonizar as duas coisas", conclui Sano. "Não é tarefa fácil".

Atualmente outras plantas secas também estão sendo comercializadas, diluindo o impacto sobre as sempre-vivas. São os frutos secos de Bignoniaceae, da família dos ipês; as inflorescências secas de Xyris e de Cyperaceae, esta da família do papiro e da tiririca; as brácteas e as folhas de algumas palmeiras. Entretanto, a mais procurada ainda é a sempre-viva-pé-de-ouro e dezenas de toneladas desta espécie são exportadas anualmente, sem controle ou manejo, principalmente para os Estados Unidos e a Europa.

 

As ervas medicinais também são abundantes nos campos rupestres. Mas ainda são muito pouco exploradas comercialmente. Geraldo Wilson Fernandes, pesquisador da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) diz que isso ocorre porque não foram descobertos os seus verdadeiros potenciais. "Isto é esperado, visto que as pessoas não perceberam que o ouro é verde. O perigo para estas espécies acontece se forem coletadas do seu habitat natural e não forem propagadas corretamente", explica.

 

Quase um sinônimo de campos rupestres, a Serra do Cipó é conhecida no meio científico como o paraíso dos botânicos. Localizada a aproximadamente 100 km de Belo Horizonte, ao sul da Cadeia do Espinhaço, abriga mais de 1800 espécies de plantas conhecidas (A Inglaterra inteira tem cerca de 1500, para se ter um termo de comparação). A chefe do Departamento de Botânica da USP, Nanuza Menezes, estuda a flora da serra mineira desde 1965. "Quando cheguei, fiquei maravilhada. Parecia um gigantesco jardim. Há flores o ano inteiro. Pensei: é o lugar mais lindo do mundo". Até hoje, aos 70 anos, Nanuza viaja para a Serra do Cipó. Lá recebeu, "com muita emoção", o título de cidadã honorária de Santana do Riacho, município próximo ao Parque Nacional.

 

A ligação da pesquisadora com a região é tão grande que muitas plantas e até um lagarto e uma perereca levam o seu nome. "É engraçado, mas também é uma homenagem dos meus colegas ao meu trabalho de quase 40 anos só no Cipó", comenta. Uma das velósias - característica por seu perfume - recebeu o nome dela: Vellozia nanuzae, numa homenagem do cientista norte-americano Lyman Smith.

 

Os primeiros a descrever a Serra do Cipó e a Cadeia do Espinhaço foram os bandeirantes paulistas que vinham para Minas Gerais atrás de ouro e pedras preciosas. A partir do século 19 a região passou a ser freqüentada por cientistas, entre os quais o mais famoso foi o naturalista, paleontólogo e arqueólogo dinamarquês Peter Wilhelm Lund, que descobriu na região um conjunto de pinturas rupestres com mais de 5000 anos.

 

No século 20 vieram os turistas. Em setembro de 1984 foi criado o Parque Nacional da Serra do Cipó, com 33.800 hectares. Os estudos para sua delimitação tiveram início em 1975 e a descoberta de várias espécies endêmicas serviu de argumento final para a criação da unidade de conservação. Mesmo com a proteção legal, fauna e flora continuam em risco. As principais ameaças são a coleta e o turismo predatórios - com trilhas mal elaboradas e fiscalização insuficiente - e a construção da estrada MG-010, que está assoreando nascentes e vales.

 

Por outro lado, alguns trabalhos de recuperação de áreas degradadas do cerrado de Minas Gerais procuram restaurar a vegetação original, atualmente descaracterizada. "Coordenei a mudança da norma técnica 13030 da ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas). Os empresários usavam até então espécies exóticas como o eucalipto para replantio. Depois que eles concordaram em trabalhar com espécies nativas dos campos rupestres, o próximo passo era conseguir as plantas no mercado.

 

“Realizamos um projeto com recursos da Fundação de Amparo à Pesquisa do estado de Minas Gerais (FAPEMIG) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e tudo deu certo", conta Geraldo Fernandes, responsável pelo projeto de recuperação. "Produzimos mudas de 40 espécies, entre elas as sempre-vivas. O grande desafio foi descobrir a maneira correta de se manejar as sementes dessas plantas".

 

A alta diversidade e as condições adversas de clima e solo, neste caso, complicam o manejo. A Cadeia do Espinhaço é uma zona de contato de três biomas brasileiros - Mata Atlântica, Cerrado e Caatinga - na divisa de dois estados: Minas Gerais e Bahia. É considerada um centro de diversidade vegetal pelas organizações não governamentais WWF-Brasil e União para a Conservação Mundial (IUCN), além de ser apontada pela Birdlife International como uma área de maior número de endemismos de aves do mundo. Por isso foi indicada como área de importância biológica extrema para a conservação da biodiversidade.

 

A contabilidade das espécies é alta. São conhecidas 287 espécies de aves na Serra do Caraça; 273 na Serra do Cipó; 371 na Chapada Diamantina; na região central da Cadeia do Espinhaço, no norte de Minas Gerais, foram identificadas 402 espécies. O levantamento e mapeamento da avifauna da região vêm sendo realizados pelo ornitólogo Marcelo Vasconcelos, sócio fundador da ONG Instituto Biotrópicos de Pesquisa em Vida Silvestre.

 

Entre as aves endêmicas, ou seja, exclusivas dos campos rupestres do Espinhaço, estão duas espécies de beija-flores - o de gravata verde (Augastes scutatus) e o de gravata vermelha (Augastes lumachella). O primeiro ocorre em altitudes que variam de 900 a 2000 metros. Visita diversas espécies de flores nativas dos campos rupestres e desaparece de locais onde a vegetação foi descaracterizada pelo homem. É capaz de capturar insetos em pleno vôo. A reprodução da espécie acontece no meio do ano e o ninho tem o formato de um pequeno copo, construído em forquilhas de árvores e de arbustos, até dois metros acima do solo. As fêmeas chocam os ovos e cuidam sozinhas da prole, como é habitual entre beija-flores, e os filhotes permanecem no ninho entre 19 e 23 dias.

 

O beija-flor-de-gravata-vermelha ocorre na porção baiana da Cadeia do Espinhaço, principalmente na Chapada Diamantina. O comportamento e o ninho das duas espécies são semelhantes e os filhotes ficam entre 20 e 22 dias no ninho. O ornitólogo francês Jacques Vielliard, pesquisador da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) descobriu em 1990 uma nova espécie: o joão-cipó (Asthenes luizae). "Foi lindo, inesperado! Estávamos eu e o meu desenhista trabalhando quando ele reparou uma ave diferente no meio das pedras. Fiquei olhando pra ela um bom tempo. Identificar uma espécie nova e endêmica da região foi fantástico. Resolvi colocar o nome da esposa do meu desenhista, Luiza. Ela ficou bastante feliz", sorri.

 

O joão-cipó é da mesma família do joão-de-barro e tem um parente da mesma espécie, que vive na Patagônia. Por muitos anos, ficou conhecida apenas na Serra do Cipó, mas expedições conduzidas pelo ornitólogo Marcelo Vasconcelos encontraram o joão-cipó em outras serras do Espinhaço. "Eu os vi no Parque Estadual do Pico do Itambé e na Campina do Bananal no norte de Minas. Essa espécie vive nos campos rupestres das serras de Minas Gerais em altitudes que vão de 1000 a 1800 metros. Vivem entre pedras e alimentam-se de insetos e seu ninho é feito de gravetos", diz Vasconcelos.

A Cadeia do Espinhaço também é riquíssima em insetos e anfíbios. E a Serra do Cipó é o coração da biodiversidade. Lá foram registradas, até agora, 43 espécies de anfíbios, sendo que 16 endêmicas da Cadeia do Espinhaço, de acordo com um guia ilustrado recém-publicado Anfíbios da Serra do Cipó, de Paula Cabral Eterovick e Ivan Sazima. Um dos pioneiros nas pesquisas com esses anfíbios foi Werner C. A. Bokermann, falecido em 1995. Ele descreveu, sozinho ou em colaboração com Sazima, 13 espécies de sapos, rãs e pererecas da Serra do Cipó.

 

Ângelo Machado, presidente da Conservação Internacional e fundador da Biodiversitas, hoje com 70 anos, conhece a região desde menino e coletou muitos bichos para Bokermann. "Trabalhamos juntos durante anos! Inclusive, o Werner me fez uma grande homenagem ao por meu nome em uma perereca e em uma libélula que eu coletei pra ele", relata. A perereca se chama Scinax machadoi e a libélula, Oxyagrion machadoi. Em contrapartida, há duas espécies de rãs do Cipó, cujos nomes homenageiam Bokermann: Adenomera bokermanni e Crossodactylus bokermanni, esta endêmica e ameaçada de extinção.

 

O cerrado tem 167 espécies de mamíferos, dos quais 19 são endêmicos. Destes, 30% ocorrem na Serra do Cipó. É o caso da raposinha, (Lycalopex vetulus) que está na lista das espécies ameaçadas de extinção do Estado de Minas Gerais e de 3 espécies de ratos-do-mato: Calomys tener, Oxymycterus roberti e Thalpomys lasiotis. Há quinze anos estudando a fauna de mamíferos do cerrado mineiro, a zoóloga da Pontifícia Universidade Católica (PUC-MG), Edeltrudes Câmara, conhece bem o Parque Nacional da Serra do Cipó. Em uma de suas saídas a campo, juntamente com o fotógrafo Roberto Murta, topou com o mico-da-cara-branca (Callithrix geoffroyi). "Ele era considerado endêmico da Mata Atlântica em altitudes de até 800 metros. Nós registramos essa espécie nos campos rupestres, a 1264 metros, portanto, aumentamos sua área de distribuição", recorda Edeltrudes.

 

Outro animal, o rato de espinho (Trinomys moojeni), dado como extinto desde 1954 por muitos pesquisadores, também teve registrada sua ocorrência na região. "É um ratinho muito lindo, não parece em nada com os conhecidos ratos de esgoto ou ratazanas, que vieram da Ásia e tornaram-se pragas no Brasil. Os pequenos roedores brasileiros são animais de muita beleza", finaliza a pesquisadora.

Como as flores miúdas e a rica fauna de aves, anfíbios e insetos, também esses pequenos mamíferos dependem do respeito pelo seu hábitat para continuar povoando os terrenos pedregosos dos campos rupestres. Do contrário, a inconseqüência do homem conseguirá extinguir o que há tantos anos resiste a todas as adversidades naturais do ambiente.

 

Campos Rupestres x Campos de Altitude

 

Cada um está inserido num bioma: os campos de altitude ficam sob o domínio da Mata Atlântica, enquanto os campos rupestres se fazem presentes no Cerrado. Os tipos de solo, de terreno e de ambiente são completamente diferentes e, portanto, a composição da flora e da fauna também diverge. Nos campos de altitude, as temperaturas médias ao longo do ano são ligeiramente mais baixas e chove com muito mais freqüência. O solo é mais argiloso. A estação seca é curta ou pouco definida. Nos campos rupestres as temperaturas médias são mais altas, principalmente durante o dia. Existe um período do ano em que praticamente não chove e o solo é bastante pedregoso.

 

A flora dos campos de altitude é caracterizada pela presença de bromélias, de orquídeas e das melastomatáceas crescendo sobre rochas de gnaisse e granito. As espécies dos campos rupestres que mais se impõem são as canelas-de-ema e as sempre-vivas, sobre rochas de arenito e quartzito. Gustavo Martinelli, um dos maiores especialistas em campos de altitude no país, afirma que existem zonas de transição entre os dois ecossistemas. "A natureza não segue o modelo cartesiano. Existem áreas de transição. Os campos da Serra do Ibitipoca, também no estado de Minas Gerais, por exemplo, possuem elementos florísticos mesclados de ambos".

 

As grandes altitudes parecem ser a principal semelhança entre os biomas, mas não a única. A riqueza de espécies, o elevado índice de endemismos, a fisionomia campestre, além do poder de associação e sobrevivência em ambientes rochosos são comuns aos dois ecossistemas. A extensão dos campos rupestres é maior e as ameaças são o uso de suas terras para a criação de gado, as queimadas (na maioria das vezes provocadas com o objetivo de "renovar" as pastagens), o turismo predatório, a mineração e o plantio de eucaliptos, uma espécie exótica. "Os campos de altitude, apesar das áreas serem menores, sofrem bastante com a destruição do ambiente que está no seu entorno (Mata Atlântica). Incêndios, turismo predatório, mineração e as espécies invasoras são também fontes de ameaça, mas em menor escala", conclui Martinelli.[/align]

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