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Álcool, Beleza e Perigo na Patagônia


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Desde pequeno, sonhava em sentir na pele a ferocidade da natureza. Conhecer geleiras, me aproximar do fim do mundo, explorar fronteiras, chegar aonde pouca gente foi. Pensando nisso, elaborei um roteiro envolvendo o sul da Patagônia.

Minha experiência Patagônica anterior* envolveu Bariloche e Pucón, destinos incríveis, mas bastante turísticos. Dessa vez, seria diferente. Essa viagem havia sido adiada por duas vezes, no fim de 2008 e começo de 2009 e o plano seria fazê-la com Robson, parceiro-bebum ideal. A poucos dias da viagem, recebi a dura notícia de que ele não iria. Um mês na casa do caralho, sozinho, seria complicado... Menos mal que minha namorada iria me encontrar por quatro dias em Santiago, no feriado de finados.

O erro da viagem anterior foi farra demais. Deixamos de fazer muitos passeios, deixamos o turismo de lado para passar o dia embriagados. Sabia da dificuldade da missão, mas fui com esse propósito: dessa vez, não deixar a putaria atrapalhar o turismo.

Os problemas começaram antes do embarque. Embarquei no dia do Círio de Nazaré, a maior festa católica do mundo. Nesse dia se come pato no tucupi e maniçoba, dois pratos pesadíssimos, ainda mais com farinha e cerveja. Poucas pessoas de fora têm coragem de experimentar a maniçoba, pois tem um aspecto de bosta de cavalo. Mas é uma delícia, e a maniçoba desse dia foi a melhor que comi na vida.

Então, exagerei na comilança. Na hora de partir para o aeroporto, escoltado por três amigos, lá pelas nove, então, comecei a me sentir mal. Ao chegar à lendária tabacaria, um bar com clima de clube no aeroporto, onde quase enterrei minha carreira nos três anos em que dei plantões no aeroporto, e tentar beber, a coisa foi piorando. Faltando uma hora pro vôo, estava me contorcendo de dor ::dãã2::ãã2::'> . Nunca senti aquilo, fazia anos que não tinha indigestão. Tentei cagar, tomar remédio pra gases e nada.

No vôo pra São Paulo, a coisa tava insuportável. Vomitei quatro vezes e só piorava. Ao chegar em Guarulhos, fui a um posto, medicado e quase não embarco para Buenos Aires. Chegando em BsAs, o dia que passei lá foi um pesadelo, mas melhorava pouco a pouco. Fiquei novamente no Obelisco e o máximo que fiz foi dar uma volta pelo centro.

 

Ushuaia

Na terça-feira de madrugada, meu vôo partiu rumo a Ushuaia (se diz Ussuaia), famosa por ser supostamente a cidade habitada mais ao sul do mundo. Ao chegar, o choque: o vento violento deu a impressão de que o avião não aterrissou e sim foi jogado no chão. Até palmas rolaram para o pouso cinematográfico. Assustador...

E, ao olhar pela janela, uma nevasca violenta! ::ahhhh:: Porra, eu tava com roupas pra frio leve, não esperava temperaturas negativas bem no meio da primavera. Claramente, subestimei o lugar...

Após quase congelar rumo ao albergue e encharcar meu tênis com os 30 centímetros de neve que havia na rua, fui comprar roupas mais apropriadas, pensando no trekking, já que eu tinha alguma coisa para neve comprada da outra viagem. Por ser zona franca, o centro de Ushuaia é, provavelmente, o lugar mais barato do continente para se comprar acessórios de neve e trekking. Comprei botas Salomon, uma marca das melhores, para duas horas depois descobrir que eram um número maiores... É foda acertar a numeração gringa, ainda mais de botas. Passei uns dois dias com uma dor torturante no tornozelo por isso, até que me emputeci e botei de volta meu tênis, não tinha mais neve mesmo...

Vamos ao turismo. O albergue que fiquei, o La Posta, é magnífico. Toda a equipe muito legal, quartos excelentes, sem beliches, banheiro privativo, roupa lavada de graça. Um lugar sem frescura, como a cidade, os argentinos do sul são bem amistosos. E com uma padaria bem na frente, onde eu comia sanduíches deliciosos regados a Quilmes Stout.

Após tomar um laxante, e finalmente descarregar todos os espíritos malignos presos em meu ventre, voltei a me sentir gente. A noite de Ushuaia é fraca, mas tem um local legal, não lembro o nome, onde fui após uma boa refeição no com três argentinos e uma argentina deslumbrante, acho que eram de Rosario. Lá, provei a bebida nacional (não, não é o vinho!), o Fernet. Tem um gosto de biotônico Fontoura se tomado puro, por isso, só se toma com coca-cola. Muito bom! Provei também Gancia, muito popular por lá, que se toma com limão. Bom também, mas enjoativo.

No dia seguinte, fui ao Parque do fim do mundo. Lá, se chega em microônibus ou vans que saem de meia em meia hora. Se paga 50 pesos ao motora e 50 de entrada. Fiz a trilha do lago Roca. Não dá pra descrever como é lindo aquilo, uma enseada perfeitamente salpicada por pinheiros. Havia ainda bastante neve. Minha bota estava me torturando e, por isso, caminhei só uma hora. Uma pena...

À tarde, assisti no hostel ao jogo que classificou a Argentina pra copa, em meio a portenhos eufóricos. No extremo sul da Patagônia, o turista que predomina é o próprio argentino. Poucos gringos e poucos brasileiros. Havia no hostel duas belgas, um casal de galeses, companheiros de quarto e um colombiano com quem fiz amizade. O resto, argentinos.

À noite, então, fomos ao mesmo bar da noite anterior e depois... Ao Red & White :twisted: , o melhor cabaré local! Fomos só pra conhecer, mas ao ver aquelas argentinas espetaculares, resolvi que iria estourar tudo o que eu tava economizando fazendo minhas refeições na padaria... O Ricardo, esse era o nome do colombiano, foi embora depois de uns 20 minutos. Devia estar liso, ou sei lá... Bom, resumindo... Red & White valeu cada centavo!

Mas eu não era louco de ficar bebendo num puteiro e, lá pelas 3 da manhã peguei meu rumo em busca de um bar para encerrar a noite. Aí vi um e, na frente, um carro com um cara e duas meninas, todos jovens, uns 19 anos. Perguntei a eles se tava aberto e tal e eles me convidaram pra sentar com eles.

Aí comecei a conhecer a face negra dos argentinos. As duas eram belas, mas uma era um fenômeno, ruiva natural. Fiquei louco, pois tenho uma grande frustração. Nunca comi uma ruiva. E o cara me chamou de canto e falou que ela tava a fim de mim e realmente, dava todos os indícios disso. Quando me virei pra pagar a minha parte da conta e pegar a carona que eles prometeram, os três se mandaram!

Bom, a conta foi baratinha, eram garotos, devem ter pensado: Vamo sacanear esse brasileiro bêbado... E me vi andando naquele vento gélido, beira-mar, a bota me matando, sem encontrar uma alma, perdido. Após meia hora, encontrei um taxi e fui dormir. Frustrado pela ruiva, mas feliz.

No dia seguinte, já sem as botas, dei uma volta pela orla. Uma beleza opressiva, perigosa, diferente. A natureza parece querer te dizer: Vá embora! O vento é tão forte que, às vezes, eu tinha que me agachar, pois se ficasse em pé, caía. O nariz escorre todo o tempo, a pele do rosto queima, os dedos ficam dormentes... Muito escroto, mas o que eu podia esperar do fim do mundo?

À noite, iríamos em grupo a um bar local, mas veio uma nevasca violenta, com ventos que, se não eram furacão, passavam perto disso. Tive que me contentar em dormir cedo na última noite, já que, às oito e meia da matina, eu iria à mítica Puerto Williams. Como eu agradeci depois por não ter feito a travessia de ressaca...

[picturethis=http://www.mochileiros.com/upload/galeria/fotos/20110814192009.jpg 500 375 Legenda da Foto]O porto de Ushuaia[/picturethis]

Puerto Williams

Puerto Williams é uma base militar, no lado chileno, com duas mil e poucas almas e fica mais ao sul que Ushuaia. Ushuaia fica em uma margem do canal Beagle, e P. Williams, na outra, ao norte da ilha Navarino.

Os chilenos, então, dizem que é a verdadeira cidade mais ao sul do mundo, ao que os argentinos rebatem dizendo não ser esta uma cidade, e sim base. Mas quem se importa com essa merda? O fato é que raríssimas pessoas se aventuram a ir até lá, tanto que eu seria o único passageiro do dia.

Por não ser uma rota comum, o preço é de absurdos 120 dólares por uma hora e meia de travessia. Cheguei à alfândega com uma Quilmes vazia, pedi ao fiscal que jogasse fora e, conversando com ele, ainda disse que Pelé é melhor que Maradona. Cada vez que falo isso a um argentino me dá uma paz de espírito...

O barco saiu com um atraso de mais de uma hora. Ao deixar o belo e colorido porto de Ushuaia. O terror começou. ::ahhhh:: Poucas vezes tive tanto medo na vida. Por duas ou três vezes, o barco virou uns 60º, achei que o fim da linha havia chegado. Inacreditável a força do vento e o tamanho daquelas ondas, e num barco minúsculo. Sorte que o piloto era fera.

Chegando ao belíssimo porto, sem saber onde ficar, sem saber se dava pra sacar dinheiro, havia um dono de pousada esperando, pois sabia que havia turista chegando. Me levou ao banco e depois à pousada, Forjadores Del Hornos. Muito boa, parece uma casa de família, e vazia. Depois descobri que havia onze hospedarias ali.

Além de mim, havia uns quatro turistas na cidade, mas dizem que no verão o pessoal vem mais. Soube que minha balsa, que sairia às oito da manhã, estava atrasada por causa do semi-furacão do dia anterior. Pensei, porra, não tem nada nessa cidade, vou mofar quase dois dias aqui. Como me enganei...

 

Mal cheguei, recebi a notícia de que aos 48 do segundo tempo umas diárias pendentes haviam caído na minha conta, justamente quando já estava não no vermelho, mas no negro, quase pedindo dinheiro emprestado ou vendendo o corpo.

Fui caminhar, sem rumo, sentir a cidade. Um sentimento especial tomou conta de mim. Me dei conta de que possivelmente nem mil brasileiros haviam estado lá (ok, essa estatística deve estar furada, mas deixa eu fantasiar, porra!) e tudo parecia com uma harmonia tremenda, e o lugar cercado por uma natureza inacreditavelmente tão linda, enfim, uma conjunção de fatores que me deram certeza de que eu jamais estivera num local tão especial, jamais sentira o que estava sentindo naquele momento.

A saudade de casa e de gente amiga foi misturada a uma sensação de paz interior, contemplativa. Algo parecido com o que o Caetano deve ter sentido quando compôs London, London, no exílio, num local onde tudo funciona, onde a segurança transborda, onde as pessoas parecem ter um prazer enorme em ajudar, em fazer a coisa certa. I just happened to be here, and it's ok. Certo, estou novamente forçando a barra. Mas eu me senti como o Caetano, porra!

A vila reserva inúmeras trilhas para trekking, que dizem ser magníficas. Como estava sem tempo e sem grana, acabei só me perdendo nas estradinhas adjacentes, o que já bastou, pois tudo ali é lindo. A visão da cidade emoldurada pelas montanhas nevadas, chamadas de dientes de Navarino, por se assemelharem com... isso mesmo, dentes, com gengivas e tudo, é embasbacante.

Voltei umas cinco horas ao albergue. Comecei a usar a internet, quando os únicos hóspedes, dois chilenos de Punta Arenas, maior cidade do sul da Patagônia, me convidaram para uma piscola, que é pisco com coca cola, como se fosse a caipirinha do Chile. Estava entretido com a net, e perguntei: “Ahora?” A resposta: “Nunca es mala hora para una piscola”. Que fazer diante de um argumento desses...

Tivemos uma empatia imediata. Um tinha uns 30 e o outro uns 20. Um a cópia do Faustão, o outro pele e osso. Funcionários da telefônica, estavam havia cinco dias lá, de plantão esperando a ligação para entrar no helicóptero e fazer um serviço numa ilha próxima. Mas nesses cinco dias, o vento não deu chance à balsa, imagina helicóptero. Coisas do fim do mundo... Tinham que esperar diariamente um possível telefonema até as sete da noite. Depois, liberados para se encachaçar.

O mais velho era biriteiro profissional, ou chichero, como dizem por lá e o jovem, um bravo aprendiz. Amor à primeira vista. Fico pasmo com este talento que tenho para atrair a escória. Me ensinaram um costume chileno, o hábito de chambrear o vinho. Chambrear é aquecer na lareira ou no aquecedor por uma ou duas horas. No frio, o chileno gosta do vinho meio quente. Aprovado, muito bom!

À noite, haveria uma onda no Orisha, bar boate local. Fomos os três, já ébrios. Começou com um videokê, só de músicas chilenas. Depois da meia-noite, começou a discoteca. Nunca tinha visto pessoas se divertirem tanto. Pareciam estar todos cheirados. Como não tem nada pra fazer durante a semana, acho que eles descontam nos fins de semana. O mais velho voltou cedo. Tive que trazer o mais novo carregado por aquelas ruas congelantes, por mais surreal que pareça um bêbado carregando outro.

No dia seguinte, acabados de ressaca, começamos a beber mais cedo, e fomos junto com a simpática moça da pousada, Yanina, a um boteco que parecia estar meio escondido. A balsa sairia meia-noite e saímos de lá em cima da hora.

Quando cheguei, a balsa tava quase saindo. Me despedi de meus amigos e de Macarena, que nos deu carona, a mais bela mulher de lá, com quem tive um flerte no Orisha, mas não segui adiante por medo, pois ela tava numa mesa lotada e um babaca não parava de dar em cima dela. Descobri depois que era a filha rebelde do dono da pousada, pintou um clima no carro, mas não passou disso. Prometi que voltaria a Puerto por causa dela.

 

[picturethis=http://www.mochileiros.com/upload/galeria/fotos/20110814193129.jpg 500 375 Legenda da Foto]O fim do mundo[/picturethis]

[picturethis=http://www.mochileiros.com/upload/galeria/fotos/20110814193929.jpg 375 500 Legenda da Foto]E o bar é logo ali...[/picturethis]

[picturethis=http://www.mochileiros.com/upload/galeria/fotos/20110814194222.jpg 500 375 Legenda da Foto]A espetacular Puerto Williams, com os dientes de Navarino ao fundo[/picturethis]

[picturethis=http://www.mochileiros.com/upload/galeria/fotos/20110814194653.jpg 500 375 Legenda da Foto]Mais beleza...[/picturethis]

[picturethis=http://www.mochileiros.com/upload/galeria/fotos/20110814194917.jpg 500 375 Legenda da Foto]Eu tambei pastei[/picturethis]

[picturethis=http://www.mochileiros.com/upload/galeria/fotos/20110814195254.jpg 500 375 Legenda da Foto]Meus companheiros de luta[/picturethis]

Na balsa da TABSA

A balsa era muito simples e a poltrona que viajei, terrivelmente desconfortável. Tive uma noite do cão. Acordei tarde no dia seguinte e perdi a quadra dos ventisqueros, o trecho mais bonito da viagem. Tinham dois turistas canadenses, bem velhos e um cara além de mim na balsa.

A balsa tem a função de abastecer Puerto Williams duas vezes por semana e aproveita e leva passageiros ao custo de 175 dólares, um décimo do que custaria um cruzeiro. Na prática, é um cruzeiro de pobre. A empresa é a TABSA, aprendi no site. Tinha uma área em cima onde dava pra ter uma visão panorâmica da paisagem, mas por ser descoberta, era impossível passar mais de cinco minutos.

Após o almoço, fui convidado pela tripulação pra beber no refeitório. Estavam tomando vinho de caixa, um vinho que vendem em tetra pak que é feito com os restos dos vinhos de garrafa. É horrível, mas muito barato, e é a bebida dos cachaceiros chilenos. Toda a tripulação era de uma simpatia notável e tinham histórias incríveis. O chileno é louco por brasileiro e odeia argentino.

Após umas quatro horas de farra, o comandante expulsou todo mundo, pra ser servido o jantar, por sinal a famosa centolla, o caranguejo gigante. Se fosse comer num restaurante, pagaria uma fortuna. Consegui dormir um pouco e acordei por volta de uma da manhã, com a balsa sacudindo muito. Não queria nem imaginar o tamanho de um mar capaz de sacudir daquele jeito uma balsa. O suplício durou duas horas. Me disseram no dia seguinte que foi durante a passagem por um canal violento, e que é “normal”.

A balsa chegaria por volta de duas e meia em Punta Arenas. Lá pelas onze, o maior susto da viagem. Estava no setor de cima e quebrou uma onda enorme do outro lado da balsa, que me encharcou, mesmo estando eu a uns sete metros. Com medo, me virei para descer, só que o vento e a guinada que a balsa deu me atiraram com força em direção ao mar. Consegui, por reflexo, segurar com as duas mãos o corrimão de ferro, e me salvei de cair no mar gelado. Eles dizem que, em caso de homem ao mar, sempre conseguem avistar a queda e que você tem uns sete minutos antes de morrer congelado. Não acreditei muito nessa porra. Acho, então, que nasci de novo naquele dia.

[picturethis=http://www.mochileiros.com/upload/galeria/fotos/20110814195911.jpg 500 375 Legenda da Foto]A balsa onde quase eu embarco de vez[/picturethis]

[picturethis=http://www.mochileiros.com/upload/galeria/fotos/20110814200349.jpg 500 375 Legenda da Foto]Esmola grande e calmaria, o santo desconfia[/picturethis]

 

De Punta Arenas até El Chaltén

Punta Arenas é uma cidade bonita, toda arborizada e cheia de monumentos. Iria passar a tarde lá e aproveitei para comprar um tênis de trekking, pois lá também é zona franca. É tipo um shopping gigante, com várias lojas, algumas enormes. Mas, apesar de maior, achei meia boca comparado com Ushuaia. O importante é que comprei um Timberland decente, totalmente impermeável, não tão bom quanto uma bota, mas pelo menos do tamanho certo. De lá seguiria a Puerto Natales, a cidade base de Torres Del Paine.

Foi aí que decidi não ir mais a Paine. Lá, você só aproveita se acampar e eu não tinha barraca, saco de dormir, fogareiro... Aquilo tudo ia me dar muita mão de obra, ainda mais sozinho. Decidi seguir de lá até Calafate para ir a Chaltén. Puerto Natales não tem nada. Bebi um pouco num boteco com uma música esquisita, uma espécie de cumbia local. Interessante. Não havia construções no caminho de ida e volta ao boteco. Estava sozinho, na pousada de uma velha, andando por terrenos baldios com um vento inimaginável. Foi a primeira vez que senti saudade de casa.

Parti cedo rumo a Calafate no dia seguinte. Iria passar a tarde lá, meu ônibus seguiria à noite para Chaltén. A avenida principal de Calafate é muito legal, repleta de bares, lojas e restaurantes. Parece Bariloche. Mesmo sendo bem menos bonita, lembra pelo charme, tipos de construções e pelo lago. Almocei no café Casablanca, excelente, e depois tomei um sorvete delicioso na melhor sorveteria de lá, esqueci o nome. Na verdade tomei dois. Parece que não aprendi com a viagem anterior* e o resultado foi um resfriado com muita tosse, que durou uns quatro dias.

Chegando em Chaltén, fiquei no Rancho Grande, maior hostel de lá. Tem refeições em conta, marca passeios, mas é uma torre de babel. Gringos estranhos e fedorentos por todo lado, muitos deles se organizando para acampar no parque. Na vila base, a vida noturna quase não existe. Os caras só pensam em trekking. Não me identifiquei com o espírito de lá, definitivamente seitas não são a minha praia. Além disso, as montanhas que cercam a vila a transformam num corredor de vento, um vento massacrante.

Encontrei Ricardo, meu amigo colombiano de Ushuaia e fomos numa choperia, mas com meu resfriado, não caiu bem aquele chopp gelado. Pedi Fernet e não tardamos a sair de lá.

À noite, conversei com o senhor dono do albergue, que me explicou que pela falta de meninas, já que as poucas que sobraram são gordas e não saem nunca de casa, devido ao clima apocalíptico, quase todos os garotos se drogam para fugir do inferno que é a vida na Patagônia. Me explicou que as casas quase não podem ter janelas, senão o vento as explode, a exemplo de casas normais diante de um furacão. Conversou comigo sobre muita coisa, como é politizado o povo argentino. Não merecem os Kirchner acabando com o país...

No dia seguinte, fiz um pequeno trekking. Não tenho certeza, mas acho que fui até a laguna Torre. Passei por uma cahoeira, por paisagens incríveis, mas nevava e chovia muito e acabei voltando antes do que gostaria. Foi foda. Fui dormir cedo, pois no dia seguinte faria a caminhada no glaciar com escalada no gelo.

Existem várias agências que organizam passeios. A que eu escolhi aceitava cartão. Eu queria caminhar sobre o glaciar. Por 50 pesos a mais, o cara me disse que era possível escalar. Aquele, com certeza, foi o melhor passeio da minha vida. Primeiro se navega para chegar no glaciar. De longe, se avista o Viedma, maior glaciar da América do Sul. É incrível. Ele tem todas as cores, até negro.

Quando chegamos na barraca base, o sol se abriu, acho que pela primeira vez na viagem. Não há palavras para descrever o que é andar sobre um glaciar. Senti dificuldades, é muito difícil andar com crampons em calçado de cano curto, fiquei com dor no pé. É um passeio com adrenalina, há momentos em que você salta sobre abismos, outros em que se anda a uns 70°, mas o crampon é muito firme e te segura. Mas, definitivamente, não é uma atividade para qualquer um. Se não estiver em forma, pode ser perigoso.

O glaciar é como sexo. Quanto mais se penetra, mais bonito fica, aparecem laguinhos com tom azul, fendas assustadoras, gretas profundas, enfim, belíssimas formações com duplo sentido. O ponto alto foi uma caverna de gelo, que derretia às gotinhas. A escalada foi bem para iniciantes mesmo, cada um subiu três vezes por um paredão de uns 25m, bem fácil. Legal pra cacete. Depois, o guia nos serviu um licor com gelo do glaciar. O preço foi de 450 pesos, bem mais em conta que um semelhante em Perito Moreno que, dizem, é bem menos interessante e sem escalada. Que grana bem investida!

Lá, tinha conhecido um uns espanhóis gente boa, um argentino esquisitão e um canadense, o Michael, que virou meu brother, à noite jantamos e bebemos juntos. Porra, não contente em ser canadense, o cara ainda trabalha na Sibéria!!!! Ele me disse que chegou a pegar -48°C!! O cara trabalha 4 e folga 4 meses e ganha extremamente bem, então com 30 anos já conhece o mundo todo. No dia seguinte, combinamos ir à famosa Loma Del Pliegue Tumbado, a mais bela rota de Chaltén.

Fui buscá-lo em seu hostel, acho que Condor Andino, que me pareceu muito mais simpático que o Rancho Grande. Ele queria pegar outra rota, porque estava nublado e dizem que o tempo tem que estar aberto, senão não é possível ver nada na loma. Mas como era meu último dia e eu queria ir à Loma de qualquer jeito, consegui convencê-lo.

A subida é barra pesada ao extremo. Se sobe pouco mais de um quilômetro, mas a subida dura mais de 3 horas. Nunca havia feito um esforço tão grande na vida. Michael é bem magro e acostumado com trekking, então não cansou tanto. O visual é inacreditável. No meio do caminho havia um rio com várias cascatas, algumas congeladas. Foi a melhor água que já provei.

A paisagem muda todo o tempo, perto do topo há um bosque vermelho. No quarto final, tudo era neve. O megavento úmido e a nevasca começaram a ficar insuportáveis, pois eu não tinha balaclava, ao contrário dele. Quanto senti meu rosto começar a queimar e não vi sinal de abrigo, rocha, nada, desisti. Voltei e ele seguiu, já uns 50 metros à minha frente. Procurando a rota de volta para esperá-lo abrigado, acabei me perdendo. Sair da trilha num local desses é perigosíssimo, pode ser fatal.

Consegui, então, enxergá-lo bem longe, na trilha certa. Comecei a correr e gritar por ele. Lá pelo meu décimo grito, quando ia sumir de vista, ele ouviu. Porra, aí enfiei a perna inteira num lago congelado. Pra minha sorte, consegui dar o passo em terra firme com a outra perna e não cheguei a me molhar. Quando contei a ele que fiquei com medo de congelar o meu rosto, ele riu e disse ser impossível naquela temperatura, devia estar uns -5°C, congelar alguma coisa. Bom, mas ele é canadense, mora na Sibéria e estava de balaclava...

No ônibus para Calafate, de tardinha conheci outro gringo figura, um inglês novo muito estranho que falava um monte de idiomas, inclusive português, tinha feito intercâmbio em Maceió. “Você conhece aquela música, é assim: Samba de Bahia, samba de Bahia...” Ver aquele gringo com cara de louco tentando cantar essa tal samba de Bahia foi o momento mais hilário da viagem! De vez em quando, ele voltava ao assunto: “Mas aquela música que eu gosto, samba de Bahia é assim que canta...” E cantava de novo. Umas cinco vezes! Putaqueopariu!!

Iria ficar no albergue Marcopollo, que quase me faria ser deportado depois... Me colocaram num beliche com mais de 2m de altura, sem escada. Pra quem tem 28 anos e um ligamento rompido, pular aquilo era quase suicídio, fora a dificuldade de subir. Não sei se foram esses pulos ou a descida da Loma, que fiz muito rápido, que me deixaram com muita dor nas semanas seguintes no meu joelho “bom”.

Jantei num restaurante próximo, chique, freqüentado por nativos, costela de cordeiro ao molho de vinho Malbec, a melhor refeição que já fiz na Argentina, por 48 pesos, uns 23 reais. A porção era gigante, própria pra repor os milhares de calorias gastas na Loma. Dormi como um rei, o rei do beliche sem escada.

Reservei o inevitável passeio a Perito Moreno. É um glaciar impressionante, alto. Mas, que decepção, não houve nenhum desabamento enquanto eu estava lá... Na volta, a bronca que quase me manda de volta ao Brasil. A moça havia deixado claro ser proibido levar bebida para a área comum do hostel, por haver um bar lá.

Mas, quando cheguei, comecei a conversar com dois irmãos paraibanos e, aí, esqueci a garrafa de Red que havia levado ao passeio e estava pela metade, no sofá. Jogamos bilhar e fui jantar, no próprio hostel. Quando terminei, Fabiano e Bruce, esses eram seus nomes, vieram me contar que minha garrafa havia sido confiscada.

Cheguei pro cara do bar e perguntei por ela, para levá-la de volta ao quarto. “Yo La tiré” Que? Demorei a entender o verbo tirar. “La tiré en los canillos”. Agora entendi! O cara jogou fora na pia. O pior era o evidente meio-sorriso de satisfação com a situação. Olhei pra ele e falei: “Hijo de puta! Hijo de puta! Eres um hijo de puta!” Repetia sem parar, era o único xingamento que eu sabia. O cara, enfim me perguntou se queria resolver lá fora. Respondi:- Claro, vamonos! -Aí o frouxo me olhou e meneou a cabeça, desistindo da “pelea”.

Continuei por lá, batendo papo com os paraibanos. Quando fui pedir uma cerveja ao outro cara que estava no bar, ouvi a resposta de que não ia mais me vender bebida por conta do incidente. Fui então, à recepção, não iria passar mais nenhuma noite ali.

Só que eu tinha um cupom que me dava uma noite grátis em qualquer hostel da rede. Retrucaram que era válido somente a partir de duas noites. Pedi que me mostrassem onde aquilo estava escrito. Alegaram que era política da casa, ao que rebati dizendo que minha política é o que está escrito. Bati o pé, não ia pagar nem pelo cacete. Nunca fui pão-duro, nem de brigar por pouca coisa, mas depois do absurdo que aconteceu, fora o prejuízo da garrafa, era questão de honra.

Pegaram o telefone, disse “isso, chamem a polícia mesmo”, não me importava em ser preso, deportado, o fato de estar com a razão já me bastava. Desistiram do blefe, disseram-me que eu não devia nada, e meus novos amigos me escoltaram de taxi rumo a outro local pra dormir.

Seguindo a dica do taxista, cheguei ao Che Lagarto. Desde o início notei a diferença. Organizado, bonito, staff sorridente e nada de proibições. Os dois me garantiram: “Brother, amanhã a gente sai daquela merda e vem pra cá com você!”, então o atendente propôs que eu passasse uma noite num quarto para doze pessoas, que no dia seguinte arranjava um privado pra nós três. Não botei muita fé que eles viessem não. Já tinham me ajudado demais. O dormitório comunitário era excelente, deixava o Marcopollo no chinelo. No dia seguinte, fui surpreendido com o mesmo cara me acordando: “Tus amigos llegaran!”. :)

Quando olhei pra porta e vi Fabiano e Bruce rindo, um sentimento de felicidade, amparo, segurança, tomou conta de mim. É como se os dois fossem minha nova família naquela terra tão extrema e que havia revelado uma face cruel na noite anterior. Talvez a única maneira de se sentir em casa em um país estranho é encontrando compatriotas. Mais que isso, aqueles dois estavam me oferecendo uma amizade sincera, desinteressada. Não estavam estudando nem trabalhando, simplesmente rodando o mundo. Nos tornamos unha e carne.

A partir daí, ocorreu o inevitável. Meus dias de turismo em Calafate chegaram ao fim. Nem mesmo a bares nós íamos, com exceção do Loca Marimba, um bar que bateu muito com meu espírito, mas estranhamente vivia vazio. Passávamos o dia inteiro bebendo, jogando bilhar e batendo papo com gringos no hostel.

Até que lembrei do meu vôo em Punta Arenas. Pra mim, havia ônibus a Puerto Natales toda hora. Não era bem assim. Meu vôo sairia 15:45 do outro dia, uma quarta-feira. Naquele dia só tinha um ônibus às 15:00 a Rio Gallegos, única forma de chegar próximo de Punta Arenas. Se perdesse Aquele vôo, eu tava fodido. Como a minha namorada da época estaria na sexta em Santiago, não dava pra ir de ônibus. A passagem mais em conta na quinta custava mais de 700 reais, pela Lan.

Meu vôo seria pela Sky, empresa de baixo custo que opera somente no Chile. Já o havia comprado no Brasil, pelo site Rumbo. Uns 250 reais, barato mesmo. Ao chegar em Rio Gallegos, soube que só haveria ônibus às 11:30 do outro dia. Me disseram que seria impossível chegar a tempo, pois a viagem dura quase quatro horas, sem contar o tempo perdido na aduana. Tentaria, ao menos, a sorte, já que Rio Gallegos é um lixo completo, uma noite ali já era um desperdício imperdoável. Fuja. Não tem nada, só avenidas barulhentas, poeira e descampados.

No dia seguinte, o pessoal no ônibus me disse que minha única chance seria pegar uma carona na aduana. Passei mais de meia hora tentando, mas os poucos carros que iam já estavam cheios. Parti, então, conformado, minha única chance seria um improvável atraso no vôo. Cheguei faltando dez minutos, voado, na carreira.

A moça fez cara de contrariada e disse que não devia fazer isso, mas me deixaria embarcar. Que beleza! O avião de fato acabou atrasando 20 minutos, mas o importante é que cheguei ainda de dia em Santiago.

Santiago

Santiago me recebeu com 34 graus! Já tinha esquecido como era sentir calor. A exemplo do dia do embarque, comecei no taxi a sentir dores abdominais, ainda na van para o hostel. O resultado foi uma noite infernal, que inutilizou meu primeiro dia na linda capital chilena. Tinha planos de ir a um dos dezenas de cafés com piernas, mas fiquei no laxante com vômito mesmo. Tive mais outras crises, normalmente de uns vinte em vinte dias, e descobri que não era intestino. Era gastrite mesmo. Um dia o corpo cobra os anos de autodestruição, mas vale a pena pagar, desde que os juros sejam em conta...

No dia seguinte, ainda verde mas já bem melhor, arrisquei uma ida ao mercado para comer os pitorescos frutos do mar locais, a maioria exclusivos da região, por questões climáticas e geográficas. Há, dentro do mercado, vários restaurantes, de bom nível e, num país onde tudo é caro, a preços bastante razoáveis. Não deixe de pedir um daqueles pratos que vem um pouco de cada, e se delicie com uma experiência antropológica sem igual.

Recomendo um pequeno restaurante logo a dez metros da entrada da rua do parque e outro no segundo andar. Você tem também a opção de desembolsar uma pequena fortuna e provar a já citada centolla. Bom, é sim melhor que o caranguejo normal, mas não vale o que pedem, de jeito nenhum. Até porque comi de graça na balsa...

O que realmente vale é o loco, uma espécie de medalhão branco muito similar à lagosta, mas ainda melhor. Peça uma porção exclusiva de locos, eles servem com uma maionese amarela que casa muito bem com os bichinhos. Foi provavelmente o melhor marisco que já provei. Todo dia lá, onde estivesse, eu comia esse troço.

Santiago é simples. Há várias atrações. O cerro Sán Cristóbal, com uma vista magnífica e um zoológico espetacular, inclusive com tigres albinos e um urso polar, o lindo e interminável parque Forestal, a Praça das Armas, o centro com inúmeras construções históricas. Fora a gastronomia, os cafés com piernas, um clima alto astral e muitos botecos com mesas na calçadas, ao melhor estilo brasileiro. Há uma rua que corta o parque entupida de bares e boates. Fiquei no hostel Forestal. Localização perfeita, staff idem e um clima aglutinador, parecia que todos ali eram uma família.

Após uma noite bem louca, com churrasco no hostel, ida em grupo a puteiro, roda de violão e bastante birita, fui dormir, pois a namorada chegaria no dia seguinte. A carência que estava sentindo fez desse encontro, um dos mais felizes da minha vida. Como eu queria contar tudo (nem tudo), mostrar tudo, aproveitar aquelas três noites dela ali.

À tarde, a levei ao mercado, ao zôo e à Plaza de las Armas. No dia seguinte, fomos ao Valle Nevado. Fomos em um microônibus fretado com guia engraçadinho, bem turistão mesmo. Fica bem perto de Santiago, mas as inacreditáveis dezenas de curvas de 180 graus tornam a viagem bem demorada. Posso estar sendo injusto com o local, pois fomos fora da temporada, com teleféricos e estações fechadas. Mas o fato é que achei uma merda. Sensação piorada pelo único restaurante funcionando, um pega-gringo caríssimo e horrível, que te faz preferir ter levado salgadinho e chocolate.

O problema é que não é uma cidade, e sim uma estação cujos únicos atrativos são neve e esqui. Se você já viu neve e mão pretende esquiar, passe longe. Mas, se for VN (virgem de neve), vale a pena. Valeu demais pra ela, feliz como uma criança, como todos ao primeiro contato com a neve.

No fim da tarde, nos sentamos num boteco na rua dos botecos, adjacente ao Parque, e bebemos a péssima cerveja chilena. Esqueci até o nome, vende por litro. Menos mal que normalmente eles têm Heineken ou Warsteiner. Aí, fui pedir um fogo prum cara. Começou a puxar papo comigo, acho que não tem chileno, que não goste de brasileiro, o elemento era bem mal-encarado.

Falou que puxou uma cana, por roubo e sei lá mais o que. A mulher ficou desesperada. Quando eu ia no banheiro, ia junto. Tenho percepção pra lidar com essa laia e em nenhum momento senti que o cara era perigoso. Claro que o álcool responde por boa parte da coragem. O fato é que, lá pelas tantas, ele falou em polícia e eu disse que era policial no Brasil. Previsivelmente, pediu pra ver o distintivo. Não sou policial, mas trabalho em um órgão, então tenho um distintivo. Quando mostrei, o cara me abraçou, riu, pediu pra tirar foto com a “placa” (pedido negado, claro)... Mesmo os marginais chilenos são bem amistosos.

No outro dia, fomos a Valparaiso. O pessoal às vezes faz junto com Viña del Mar. Por ser uma cidade mais histórica, achei que me identificaria mais com a primeira. Por isso, fomos somente a ela. Valparaiso é, vamos dizer, como uma Olinda em estilo espanhol, só que com um porto. Assombrosamente bela.

As ladeiras, o bondinho, monumentos, palácios. Embasbacante. Um clima inclusive bem romântico. Por ser região portuária, há um monte de botecos no entorno, alguns sujos, do jeito que eu gosto, chamando. Me arrependi de não ter reservado uma ou mais noites ali. Valparaiso merece um porre!

Dia seguinte, é chegada a hora da partida dela. Fomos de metrô ao aeroporto. É bem simples, é so descer na estação Pajaritos e lá pegar um dos ônibus que saem toda hora e te deixam no aeroporto. Se não me engano, é lá também que saeem os ônibus para Valparaiso e Viña del Mar.

Santiago é muito grande e o metrô é bem abraangente. Logo depois, ao retornar, era minha vez de partir rumo a Mendoza. Há ônibus e vans na rodoviária rumo a Mendoza. Dei sorte de pegar uma van que partiria em dez minutos. Não lembro quanto foi, mas o percurso é bem bonito. Tente sentar à esquerda, pois, se não estiver nublado, o que é bem provável dada a enorme aridez da região de Mendoza, dá pra ver o Aconcágua logo após cruzar a fronteira. Neste dia estava nublado...

Mendoza

Cheguei à noite em Mendoza. Há várias pessoas oferecendo pousada na rodoviária. Recusei, queria ir a um hostel. Me aventurei pegando um taxi até o Che Lagarto. Lotado. O gerente telefonou para outros e todos tavam lotados. Me explicou que a rede hoteleira da cidade é deficiente, mas me chamou um taxista que saberia aonde me levar.

Assim, fui instalado no Castelar, um duas estrelas simples, mas bem honesto, limpo com tv a cabo no quarto e um bom café. Creio que foi uns 140 pesos a diária em quarto individual. Acabei percebendo que eu estava era precisando ficar um tempo descansando, longe do caos que caracteriza os hostels.

Não lembro o nome, mas a localização era impecável, a uma quadra de uma rua repleta de bons restaurantes e a duas da praça principal, com mais uma penca de ótimos restaurantes e bares. Além disso, o cachorro de lá era um huski idoso com um olho de cada cor!

Após jantar caminhei um pouco pela noite tranquila de Mendoza e um edifício enorme com luzes coloridas chamou a atenção. Ao chegar lá, vi que era um cassino! Que legal! Já havia frequentado cassinos em Pucón e Buenos Aires*, mas não tinha jogado. Aproveitei que não tinha bebido muito e estipulei o limite de 200 pesos. Ao perder, já era, casa e tchau. Após umas duas horas de roleta e poker, a grana voou. A gente senta à mesa como James Bond e levanta como um pato. Um dia eu ainda entro para o jet set...

No dia seguinte, após um grande e barato almoço num local recomendado pelo hotel, em frente à praça, eu iria ao famoso passeio das vinícolas. É uma pechincha absurda: 25 pesos por duas vinícolas, uma fábrica de azeite e outra de licor, com direito a um monte de degustações. O preço dos vinhos também parece piada. A primeira é a melhor, pois é mais artesanal, você sente a diferença. Pode abrir a carteira! Na fábrica de licor, se tem direito a somente uma dose, de qualquer dos destilados.

A segunda é paga. Há uma joia lá. Absinto 75º, uns 30º a mais do que é permitido no Brasil. Pedi e me arrependi. Queima de uma maneira inacreditável. Terminar o copinho foi um suplício, e só o fiz para não fazer feio diante dos argentinos, totalidade na excursão. Comprei uma garrafa de um licor de pimenta(!) delicioso, acabei em uma hora com meus amigos em Belém. Na verdade, se não fosse o inconveniente de carregar um monte de tralha, tinha comprado muito mais do que comprei, pois vale muito a pena. À noite, jantei e bebi num dos bares da praça, muito bom, e dormi leve...

Acordei ansioso. Iria fazer o passeio Alta Montaña e conhecer a base do Aconcágua! Pelo menos achava que ia. Na verdade, você só chega a um mirante distante uns 40 km dele. Ainda assim, a visão do "sentinela de pedra" é estonteante. O topo é todo coberto por gelo, contrastando com os outros picos, que "só" tinham neve no cume.

O passeio é muito legal. Passa pela bela cidadezinha de Uspallata, por um lago histórico, não lembro porque, além de se poder admirar algumas das montanhas mais altas do planeta.

Mas o melhor é a parada final. O povoado de Puente de los Incas, onde no passado foi construído um hotel de luxo, reduzido a pó por uma avalanche. Há impressionantes formações rochosas, com águas termais onde os turistas outrora se banhavam no hotel, destruído nos anos 60. O artesanato é um show à parte: muito interessante e uma pechincha. Comprei dois cinzeiros lindos a sete pesos cada. O almoço é lá, no ótimo Parador del Inca, comida simples, boa e barata. Raridade em excursões.

É uma babaquice comparar destinos, mas para o meu gosto, há vários lugares melhores para conhecer na Argentina do que Mendoza. Mas, se seu tempo estiver sobrando, é sim uma cidade interessantíssima. Se fosse novamente, daria um jeito de pesquisar uma maneira de ir à base do Aconcágua. Não é um passeio padrão, não é o tipo de informação fácil de conseguir em agências, mas sei que é possível. Enfim, como tinha tempo, no meu caso Mendoza foi legal.

Uma trip louca em Buenos Aires

Embarquei de volta para encerrar a odisseia com quatro noites em Buenos Aires. Já havia vivido intensamente ali, aquele lugar é especial para mim, mas dessa vez embarcaria na mais bizarra das trips.

Havia combinado com Fabiano e Bruce de nos encontrarmos ali. Os dois doidos simplesmente alteraram a passagem para curtirmos juntos mais uns dias. Ah, a liberdade, o estilo de vida beat... Tinha reserva no Obelisco, mas os babacas simplesmente a cancelaram porque não respondi o email de confirmação. Mas o site do Hostelworld não fala nada sobre isso.

O hostel mais próximo da rede Suites com vaga era o Tango, distante umas doze quadras, já em uma área residencial. A localização me deu trabalho e a gerente era uma megera intragável, que tratava os hóspedes como internos. Após mais esse par de experiências desagradáveis, decidi evitar a rede Suites a todo custo. Mas um de seus hostels daria a tônica daqueles dias: o Hostel Suites Florida.

Os dois brothers estavam hospedados ali, então, tão logo me instalei, fui procurá-los. O Florida tem uma fachada muito pequena e discreta, mas ao adentrá-lo, um mundo se descortina, uma coisa meio massacre no bairro japonês.

Como os dois haviam saído, deixei recado na recepção de que os esperaria, claro, no bar. Ao chegarem, confraternizamos e amanhecemos na boate.

E, a partir daí, os dias foram se amontoando, e minha noção de tudo foi indo pro espaço. Uma das poucas coisas que lembro claramente foi quando entrei em um daqueles puteiros do centro, a mais famosa armadilha de Buenos Aires. Entrei pra conhecer e ver se dava pra levar os meninos à noite.

Nem bem sentei e caiu a ficha. Eu tava fodido. Mulheres medonhas e bebidas colocadas quase instantaneamente na mesa. Nem bem fiz menção de levantar e fui cercado. A segurança (sim, mulher) começou a vomitar uma metralhadora de palavras. Logo olhei ao redor e vi mais dois caras, impossibilitando qualquer tentativa de reação.

Precisava pagar 60 pesos pela minha liberdade. Apalpei a calça e consegui uns 40. Saí cuspindo fogo e cagando bala. Quando encontrei os dois, estava tão furioso que os chamei pra ir ali "quebrar um pessoal". Quando falei puteiro, Fabiano já perguntou: -Sessenta pesos? Relaxa, cara, quem não caiu no conto dos sessenta pesos não conhece Buenos Aires. Só eu já cai três vezes! É, realmente não conheço essa cidade...

O tempo naquele hostel parecia não passar. Como num cassino, em nenhum lugar da área comum havia janelas. A única maneira de saber a hora era quando a boate abria. E passei as noites enfurnado ali e chegando ao meu hostel próximo ao meio dia. Às vezes nem dormia. Aquela história de o mundo inteiro acordar e a gente dormir é belo na canção. Na vida real, quase sempre deprimente. Um caleidoscópio sem lógica.

Sempre fui meio da pá virada, mas meu limite é a noite. Costumo me sentir um lixo quando amanheço. Por isso que, ali, naquela Buenos Aires lado B, estava afundando cada vez mais, numa viagem underground meio suicida. De repente, jogava pôquer numa noite e, na madrugada, me via em meio a uma balada trash tentando me enfiar no meio de um beijo lésbico. Horas depois, dormia em um beliche com o sol a pino, em meio a gringos pra lá e pra cá. A cabeça, a vida, tudo girando, girando, girando...

Não consigo lembrar exatamente como encerrei os dias, mas o fato é que estava clamando pra voltar pra casa. As três horas de atraso renderam chopes e mais chopes e um ótimo papo com um argentino que vivia em São Paulo, no fumódromo da sala de embarque.

Ao finalmente partir, acho que no momento de entrar no avião, percebi que não estava normal, sentia alguma coisa estranha. Não, não era ressaca, cansaço, angústia ou saudade. Era a famigerada gripe suína, a moda daquele inverno, se instalando.

Tive tanta sorte que a danada me poupou até a última hora, atacando na saída e me proporcionando duas talvez não merecidas, mas providenciais semanas de folga do trabalho. E já planejando a volta. Mas isso, claro, é uma outra história.

 

*clique no link abaixo: Bariloche-Buenos Aires-Pucón

Editado por Visitante
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O primeiro relato que li no mochileiros.com foi um relato seu e começava assim: "Há pessoas que gostam de casas. Outras, de carros. Outras, de luxo. Eu gosto de viajar. Tudo o que faço, que planejo, o dinheiro que guardo, é pensando em viajar..."

 

Fiquei uma meia hora relendo estas frases iniciais e pensando: "que bom, tem gente que pensa como eu!!" . acho que até mandei ou Mp ou deixei msg, não lembro... Além do mais eu adoro tomar umas qdo viajo...heheh

 

Bom, tô adorando as aventuras no fim do mundo!! muito bem humorado e engraçado!

 

Aguardando continuação!

 

::otemo::

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Cara, eu tive a curiosidade de procurar na internet a maniçoba e realmente vc não exagerou quando disse que parecia "bosta de cavalo". O aspecto é tenebroso, mas eu acredito que o sabor deve ser muito bom, pq pra uma pessoa comer aquilo, o gosto tem que ser bom.... hehehehehe

Eu não conhecia, pq moro em MS, mas aqui tb temos pratos típicos que causa certa estranheza em quem é de fora, como o pucheiro, por exemplo, que é um caldo com aspecto de lavagem de porcos!!! Mas é bom demais!

 

Muito bom teu relato!!!

Abraço.

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Ethilic Trekker,

 

Desculpa estar "poluindo" seu relato, mais vou deixar um recado para o Pericles, " miniçoba é bom D + + + " só quem já teve a "coragem" de comer sabe disso (essa é minha opinião). ::otemo::::otemo::::otemo::

 

Gostaria de pedir para você, lá em gastronomia,culinária brasileira, deixar uma descrição com fotos do "pucheiro"

 

Maria Emilia

 

Em tempo conterrâneo, estou aguardando os próximos capitulos ...................

 

Maria Emilia

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Olha eu poluindo o tópico aqui tb... ehehehehe

Maria, Eu até procurei fotos na net, mas ainda ainda não consegui!!!!!! Acho que estamos mal de cultura gastronômica por aqui, mas posso te adiantar que é parecido com uma sopa, e vão vários ingredientes! É muito apreciado no inverno e, como eu disse, na panela lembra uma lavagem de porcos, mas despeja-se o caldo com alguns pequenos pedaços dos ingredientes no copo, e o aspecto fica igual a de qq outro caldo!

O sabor é muito bom!!! Vou procurar os detalhes e posto lá onde vc me indicou!

Abraços!

Ah, em tempo: Temos um pirão aqui, que é diferente do pirão feito em outros lugares, o aspecto é pior ainda, mas o sabor eu acho melhor que o pucheiro!!!

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  • 3 meses depois...
  • 4 semanas depois...
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Frida, Dé, David, Maria Emilia e João, perdão.

Tava viajando a trabalho, minha vida tá uma cagada, muita coisa, voltei de férias agora e acabei esquecendo completamente que tinha escrevido este relato. Obrigado pelos elogios. Fico feliz e dá força pra continuar. Agora eu continuo!! Vou botar até foto!!

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